O homem que fala não sabe o que aqui anda a fazer. A rapariga que fala diz que são coisas de "vudus" e assim, pergunta se a outra sabe o que é. Não imagino sequer de que combinam. Arrepio-me. O rapaz que fala ri-se muito e não tem tento na língua. Há bocado, um bando de depravados galou desavergonhadamente a rapariga de saia curta. Ela roía as unhas, roxas, uns tamancos respeitáveis. Uns senhores tamancos.
-Levava-te para casa e lambia-te essa c... toda.
- Eu faria de ti um corno manso, ripostou.
E ainda se diz que o direito de resposta anda moribundo.
Fala muita gente ao mesmo tempo e há conversas que se perdem. É ruído branco. A mulher ao meu lado fala muito ao telemóvel. O rapaz da frente baixa os olhos e posso dizer que já nasceu cabisbaixo, que há-de ficar corcunda cedo na vida. O cabo-verdiano que fala em crioulo, repete muitas vezes a mesma ideia, por outras palavras, para que a tia entenda: recebe o salário na segunda-feira, fará a transferência na terça-feira e ela terá o dinheiro na quinta. Repete: segunda-feira é dia de pagamento, o dinheiro por ser de banco diferente só cai na conta dela dois dias depois. Como recebe à noite, só terça-feira de manhã consegue ir ao banco. A tia não acredita, desconfia. Ele volta a explicar, irritado que ela duvide da palavra dele.
Evapora-se a conversa em ruído branco. Evoco o direito à desatenção, não quero ouvir.
Aos meus pés, uma garrafa de água de 1,5 l, meia cheia, meia vazia, bamboleia. É um corpo estranho. A mulher que se senta ao meu lado assusta-se com a garrafa. Encosta-se quase a mim. É outro corpo, demasiado, estranho. As paragens passam; na verdade ficam. Eu sou paisagem.
Se me perguntarem quanto tempo demoro ao destino, direi: o tempo de cinco paragens...centenas de corpos estranhos, vozes dissonantes, e muito ruído branco. Há medidas de tempo que são a estranheza de um corpo, ou a ininterrupção de um pensamento. Perdi a paragem!
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