segunda-feira, agosto 20, 2012

duas cidades e uma mala [#prosas bárbaras]


A primeira vez que estive com o Tom Zé ele abriu-me a porta de casa, tocou violão e serviu-me café. A segunda vez gritou "puta-que-pariu" porque alguém se enganou mais que uma vez num acorde qualquer, enquanto se gravava um DVD no estúdio da Biscoito Fino, em São Paulo. A terceira vez já não me lembro muito bem, mas deve ter sido por telefone e eu já era a amiga portuguesa, a amiga das raízes da Língua dele. A língua que ele andava a comer. Por isso não me admira que o mês passado ele tenha sido capa da revista brasileira Bravo, quase nu e rodeado de bananas. É mais que um provocador, é Macunaíma inteligente, é figura que Mário de Andrade gostaria de ter como personagem principal num livro sobre Tropicalismo. De entre as várias lições que Tom Zé me deu, nessa tarde, com infinitas horas e bem-te-vis na janela de casa, uma delas foi a lição da mala. Sim, a lição da mala. Eu nunca me tinha apercebido, mas adoro malas antigas. Não pelo que elas possam conter, mas pelas histórias que elas possam contar. Porém, a história da mala do Tom Zé é mais do que viagem e memória. É, poderia dizer, uma história de amor. O compositor diz que aprendeu a ser com o homem da mala. O mimo que no meio de uma praça coloca a mala e quer seja palhaço, ator, performer, consegue envolver todos os que o rodeiam, passam, anónimos, desconhecidos. Toda a timidez será perdoada se aquele homem que se despe, que está nu perante os outros, conseguir cativar um sorriso, mais importante: a atenção. "É uma coisa assustadora", disse contundente e loquaz Tom Zé. Essa imagem, enaltecida por ele, marcou-me e, mais do que isso, lembra-me recorrentemente, por que razão uma mala é a minha fronteira entre duas cidades que amo: uma que me ama e remotamente me atira para uma solidão talvez mais próxima de mim; e outra que me rejeita com laços profundos e sentimentais. Falo de São Paulo, do Porto. No meio, confesso, adoraria que houvesse outra cidade intermédia, o desafio de um lugar novo, uma geografia desconhecida, um recomeço, com a mesma mala. Esta, que no fundo, está sempre vazia para ser enchida com a magia da vida, das pessoas que conheço, das descobertas de mim, do pôr-do-sol, de andar por aí. 

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