Como se já não bastasse o vício de sublinhar os livros ou, quando não são meus, de me munir de um caderno para tirar notas sobre os livros que leio, criei, recentemente, o hábito obsceno de tecer conclusões escritas depois de os ler, na primeira página em branco. Que me perdoem os autores e os meus herdeiros, mas sou muito mundana com os objectos, uso e abuso, gasto e desgasto, e as extensões de nós carecem de sacralizações de intocabilidade.
Tenho uma relação física com os livros, sabemos: gosto de os cheirar, tocar, mexer, degustar. Esta relação biblofágica (de comer os livros com a colher da metáfora) anda, pois, a deixar-me ansiosa (quanto mais leio, mais quero ler), uma vez que tenho tentado aproveitar como deve de ser a silly season, época em que a imprensa portuguesa exagera nas páginas do jornalismo de coisas giras (hábil arma de propaganda para entorpecer ainda mais um bocado a moribunda democracia); em que desaparecem documentos públicos sobre submarinos e em que quase acreditamos que Dom Sebastião vai aparecer entre o nevoeiro do horizonte do mar, depois de um dia de praia espectacular, que nos vaporiza com um lança-perfume de que está tudo bem, que vamos ser felizes para sempre e amorosos uns com os outros.
É um
estado onírico. Talvez por isso seja tempo de pôr aqui a primeira
frase citada pelo escritor colombiano Juan Gabriel Vásquez, no
início do livro “O barulho das coisas ao cair” (Alfaguara 2012).
“E
ardiam desabando os muros do meu sonho, tal como desaba gritando uma
cidade” (Aurelio Arturo, Cidade de Sonho).
Há,
sim, um denso desabamento emocional do início ao fim deste romance,
ao mesmo tempo que se ergue uma muralha dentro de um homem. É a
fortaleza do medo, do impacto que o medo inflige sobre Antonio
Yammara e sobre a capacidade que um acaso, uma conversa, um olhar,
tem de mudar o rumo de vidas.
“
...eu pensava com uma concentração cada vez maior em Ricardo
Laverde, nos dias em que nos conhecemos, na brevidade da nossa
relação e na longevidade das suas consequências”. pg. 16
Há
nesta obra literária, o medo da sombra, o medo do ruído, o medo do
silêncio, o medo das pessoas, da rua; o medo da memória, o medo de
viver; o medo do medo e de nunca superar o medo.
Foi o
primeiro livro que li de Vásquez, de certa forma guardado no meu
inconsciente por duas razões: a primeira porque foi considerado, o
ano passado, um dos 25 melhores livros pelo jornal espanhol El
País, tendo inclusive ganho o Prémio Alfaguara; e, depois,
porque tenho um especial interesse por questões relacionadas com
narcotráfico, memória, ditadura e veias abertas da América Latina.
“O
barulho das coisas ao cair” é um livro de um ruído imenso, de
aviões a cair, de arrependimentos, de balas, enquanto flirta com um
silêncio angustiante. O silêncio do cárcere, a mordaça da
ditadura, a “inocência” de um negócio que resvala a Colômbia
para um espartilho sócio-político e que plasma numa geração
marcas graves e profundas de um fracasso. É um fio invisível que doba toda a cultura colombiana.
Foi
por conhecer Ricardo Laverde, num tasco onde se jogava bilhar, que
Antonio inicia um capítulo da vida que o leva a esse medo e a uma obssessão. Baleado,
sobrevive, depois de tiros que vêm governados e incisivos a partir de uma mota. Laverde sucumbe.
Anos mais tarde, uma notícia sobre o Jardim Zoológico do narcotraficante Pablo Escobar leva Antonio ao recôndito baú da memória, para se recordar do tempo em que encetou uma investigação para perceber quem era Laverde. Neste percurso, assenta a geografia desta prosa, ora misturada com linguagem epistolar, ora com diálogos e reflexões de um narrador omnisciente, sem ironias, articulando presente e passado, e azimute a avançar o futuro. É um livro carregado de simbolismo, na estrutura narrativa, que demonstra que foi planeado, sem relações gratuitas; e de palavras alusivas a barulho, ruído, retumbantes impactos nas vidas de uns e outros.
É uma obra bem escrita, em que narrador e autor se perdem. Aliás não chegamos a ter rigorosa certeza do que possa ser ficção ou realidade, já que o que interessa a Vásquez, na linguagem seca pela descrição, é o apuro dos factos, criados na diegese literária, ávido em nos provar a lógica da relação dos acontecimentos, para que, por vezes, no meio de um imenso silêncio – arrastado pela tristeza desta prosa magistral- consigamos ouvir o ruído das coisas a cair. Considero, no entanto, que o livro poderia ganhar mais fôlego na síntese e economia desses supostos factos condutores. Demasiados pormenores não nos fazem perder na história, é certo, mas valorizariam ainda mais o ritmo da prosa.
Anos mais tarde, uma notícia sobre o Jardim Zoológico do narcotraficante Pablo Escobar leva Antonio ao recôndito baú da memória, para se recordar do tempo em que encetou uma investigação para perceber quem era Laverde. Neste percurso, assenta a geografia desta prosa, ora misturada com linguagem epistolar, ora com diálogos e reflexões de um narrador omnisciente, sem ironias, articulando presente e passado, e azimute a avançar o futuro. É um livro carregado de simbolismo, na estrutura narrativa, que demonstra que foi planeado, sem relações gratuitas; e de palavras alusivas a barulho, ruído, retumbantes impactos nas vidas de uns e outros.
É uma obra bem escrita, em que narrador e autor se perdem. Aliás não chegamos a ter rigorosa certeza do que possa ser ficção ou realidade, já que o que interessa a Vásquez, na linguagem seca pela descrição, é o apuro dos factos, criados na diegese literária, ávido em nos provar a lógica da relação dos acontecimentos, para que, por vezes, no meio de um imenso silêncio – arrastado pela tristeza desta prosa magistral- consigamos ouvir o ruído das coisas a cair. Considero, no entanto, que o livro poderia ganhar mais fôlego na síntese e economia desses supostos factos condutores. Demasiados pormenores não nos fazem perder na história, é certo, mas valorizariam ainda mais o ritmo da prosa.
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