quinta-feira, maio 31, 2012

Marrar em tempos modernos

Hiberno, eu tento, mas não é possível. A nossa caverna, agora, tem Facebook, twitter, vimeo, jornais online, youtube, sites, mensagens, telemóvel. Eu tento: desligo o telemóvel e, quando ligo, logo martelam mensagens de voz, mensagens escritas, multimédias, notificações. Aprendi, surpreendo-me, de que sou a high tech lady in a ultra high tech world. Muito diferente dos meus tempos de Faculdade: havia os apontamentos, as fotocópias. Ponto final.

Porém, eu até gosto, assim como gosto de desligar e amar com um livro no colo, deixando a relva do Palácio, do Parque da Cidade, ou do Jardim Botânico, folhear as páginas dos meus livros silenciosos, da minha pele. Do sol a roçar-me o rosto. E, nestes dias, redescobri o que é ser ermita para o estudo, por agora.

Nunca desligo, nunca estou absolutamente concentrada, e estou, porque sou uma miúda altamente visual no exercício do estudo. Preciso do estímulo para entender e consolidar conhecimento. Dos meus esquemas a tinta no papel em branco, aos sites de podcasts e vídeos sobre o tema. Porque os Direitos Humanos são transversais, indivisíveis, intersectoriais. É nisto que ando mergulhada para o exame que me espera sábado. Ao menos não poderei dizer que não me divirto, apesar da obrigação. Tornar a disciplina numa reinvenção hiperactiva (porque eu continuo com o síndrome dos bichos carpinteiros). E estudar, para mim, revelou-se isto, em tempos contemporâneos, estar antenada em reclusão. Vou só ali ler mais um pouco sobre justiça de transição: o direito à verdade, justiça e reparação. Talvez encontre algum romance sobre o assunto e me perca durante a tarde com a Literatura. 

segunda-feira, maio 28, 2012

introdução à espionagem


Talvez seja o meu lado Mata Hari a pôr-se na pele aflorada, não sei. Ou, então, talvez me tenha entusiasmado com este caso das secretas em Portugal, que pôs todo o sistema de segurança nacional em causa, a propósito de alguns espiões fajutos e da mais baixa estirpe, esgoto abaixo. 


Em todo o caso sempre gostei de filmes de espiões, bandas sonoras que remetessem para o género e ouvir a música de "O Santo" dá um certo arrepio suspicaz na espinha, como se tivesse sido escrita a pensar em mim. Adrenalina boa, acredito. Depois, há os filmes do 007 sempre clássicos para ver e rever em casa e sempre me imaginei a fazer aquelas acrobacias intelectuais para fintar o inimigo, soltando o lado estratega que há em mim, na ficção, já que na vida real, ele passa-me ao lado, mas com estilo e muita pinta. 


Acho que com alguma competência poderia aprender línguas e mudar de sexo, quem sabe. A missão Bond Girl sempre me pareceu demasiado desinteressante, por isso acredito que com um exímio treino como deve de ser poderia, pois, num mundo paralelo, quem sabe em noctívagas investidas, dedicar-me à arte da vida dupla, ao serviço de sua majestade inventada. 


Enquanto tudo isso não se materializa, posso dar-me por satisfeita por folhear o preâmbulo do manual da espionagem. É que este é o meu mais recente brinquedo oferecido por A. Quem sabe o meu Padrinho na arte "undercover". 


A russa Kneb 30 que anda nas minhas mãos (vintage russian spy camera), trazida diretamente da Jordânia, onde posso ver a vida a 16mm, subrepticiamente (o rolo há-de estar a caminho) dá vontade de responder: my name is Bond, Vanessa Bond!

quarta-feira, maio 23, 2012

A Barbearia #1

Planeta macho, aprendam: 96% das mulheres adoram que vocês lhes beijem o pescoço.

quinta-feira, maio 17, 2012

O fogo, silêncio da combustão do tempo, literatura, as palavras que nos queimam; Andrea del Fuego

O texto que escrevi para o o Colóquio Tinha Paixão, Literaturas Brasileira e Africana, ja esta disponível para ser lido e partilhado. Deixo-vos aqui um pedaço de FOGO.

"O fogo é uma serpente, bruxuleante - labareda que lambe o ar - e perto do papel fica ansioso, visceral, numa obsessão compulsiva, com transtorno pirotécnico, até que queima, funde-se no papel, ziguezagueando o ar; deixa cheiro de ardência em toda a casa (assim como há livros que nos queimam, ardem lentamente, ou nos atiçam chamas ao pensamento); deixa esse odor, bronzeado pelo leve queimado, talvez um pouco de fuligem no final, coisa mínima, e a acre fragrância de uma página que perdeu a vida. Já experimentaram queimar uma folha de papel? Não vos deixa a ideia de poder?, de recomeço, de impermanência, mas ao mesmo tempo de um alívio infinito, como se o tempo meditasse por nós?" 

O resto esta aqui em PDF.
E ainda uma brincadeira áudio que não chegou a ser veiculada no Colóquio por falta de tempo, mas que agora vos deixo:

terça-feira, maio 15, 2012

Paixão, o entorpecente, double shot



A paixão é uma equação curiosa e rasteiramente invariável. Apesar de o nome ser o mesmo, no célere rastilho de seus sintomas, ela é sempre uma outra coisa, variando desta para aquela pessoa, deste para aquele cara, de olho em olho, de boca em boca, de mão-dada-em-mão-dada, de colo-em-colo. 

Decidi, por isso, há alguns anos dedicar-me ao tema e andei por aí, me apaixonando em overdoses. Esse era o limite. Quando viesse o resto, o termómetro dispararia. (Ainda não tinha o telemóvel da moda, senão, em vez disso, teria colocado um lembrete com alarme double-shot, de 5 em 5 minutos). 

Só tendo um significativo universo amostral poderia, pois, inferir sobre, concluir, tirar as devidas ilações, tendo-me como único mas excelso membro honorário do júri. O veredicto (além de servir para desiludir o universo feminino: não, miúdas, eles não são todos iguais) é o de toda uma ciência onde entram exarcebadamente vários processos químicos, sem idade, e onde a equação inicial: corpo-a-corpo é mutante, para resultados díspares.
Agora, sabemos, há um pré-operatório essencial nesta orgânica, para que quando estivermos no processo da cirurgia, a revirarem-nos todas as vísceras, não nos doam as pancadas das loucuras que cometemos, como, e para ser bem eufémica: passar noites em branco. 

Nesta sondagem in loco, um inquérito corporal, de degustação evidente, apercebi-me de que é um entorpecente poderoso, capaz de pôr o mundo em silêncio ao redor, girando, enquanto o psicoactivo faz efeito e todos nos chamariam de tontinhos, resolver conflitos israelo-palestianos, diferendos religiosos, disputas domésticas. Somos astronautas, exploradores e nómadas, funâmbulos, pássaros livres sob alto mar. Somos tudo e temos o mundo aos nossos pés. Somos capazes, inclusive, da proeza de enganar o tempo. Sob este entorpecente contínuo a indústria relojoeira, parece, entraria em colapso. 
Além do mais, vencendo este exercício continuamente, como não haveria tempo para guerras e intrigas, porque todos estariam, esses ocupados torpes, concentrados na velocidade do beijo, no tratado da biologia das mãos, a fundamentação da metafísica do corpo e a temperatura a que ardemos por dentro, o mundo seria um lugar altamente recomendável para ficar toda uma eternidade. Só não sei se haveria espaço para todos.    

segunda-feira, maio 14, 2012

Andrea del Fuego no Tinha Paixão

É hoje minha gente. Nos Maus Hábitos, no Porto, a partir das 18h30, no Colóquio Tinha Paixão,  Literaturas Brasileira e Africana. Já anotaram na Agenda? Falarei sobre a escritora brasileira Andrea del Fuego, prémio Saramago 2011, autora do livro "Os Malaquias". A sessão contará, ainda, com apresentações de Ana T. Rocha, que falará sobre a escritora são-tomense Conceição Lima, e o Prof. Dr. Pires Laranjeira, a propósito do autor angolano João-Maria Vilanova. 

Além disso, haverá after-session: com a presença do escritor Luandino Vieira (exposição e venda dos livros NOSSOMOS), e uma atuação musical de Paulo César Anjinho e Marcos Mesquita Damasceno. SARAVÁ!


sexta-feira, maio 11, 2012

Os dedos do homem que voava no piano (e a imagem que nunca terei)

Copyright de Bernardo Sassetti
Imagem/Copyright de Bernardo Sassetti
Não sei medir a dor, mas com ele a dor era bonita, intensa, catártica. A dor de criar, de libertar a alma e a inteligência lírica, em notas de música, enquanto as cordas eram percutidas por martelos accionados pelas teclas: ora brancas, ora pretas. Acordes, deslizes no marfim, ébano, acidentes e bemóis.


Deviam ver como elas voavam. Brincavam com as partículas de luz, dançavam com a vibração, e sorriam como se dissessem que a vida é esta festa sensível e mágica de vivenciar a criação como num estado de êxtase. E o feiticeiro desta magia era o Sassetti. Neste sapateado etéreo estamos em transe, acordados, transmudando a pele para ler o mundo sensório como cortina transparente: tamisamos cirurgicamente o estímulo que nos dá. 
Elas saíam primeiro da linguagem sensorial, só dele, metiam-se nas mãos e, depois, pegavam-se às pontas dos dedos, como se a ganhar impulso para o librar etéreo. Plumoso estado; penas serpenteando a brisa, o sopro do mundo, como este, agora: perniciosamente fugaz. 

Antes de se dissiparem na orgia, as notas acasalavam, pariam filhos que, efémeros, logo percebiam que o mais importante da passagem por aqui é juntos sermos melhores do que no isolamento do ego. Elas entrelaçavam-se, voláteis e coloridas, para a melodia e, depois, livres, desapareciam. E dissipavam-se mais lentamente com a música "O Sonho dos Outros", a minha favorita. Tanta paz!

Eu sei que tudo isto é um mundo invisível, mas posso jurar que as via e com elas estremecia. Eu via os sons. Via sempre as notas nos dedos do homem, o Sassetti, que voava no piano, mesmo que ele não estivesse. E, sem asas, voava como se estivesse a solo com ele, da mesma forma que via como a cabeça dele pairava, deixando apenas a matéria, embora dentro ardesse um fogo criativo que só os génios conhecem. E eu conheci o génio numa tarde em Lisboa, no espaço do BES, na Praça Marquês de Pombal, por causa do Nelson. Fomos para uma reunião de trabalho a propósito das belíssimas fotografias a preto e branco que o Sassetti fazia. Pequenos fotogramas cinematográficos com movimento, pautados pelas texturas do PB que ele usava como se fossem notas musicais. Pautar a vida. 


Havia o si bemol que era a madeira das janelas do bairro Alto; o SOL de Lisboa, os cantos de LÁ, a sombra de SI, uma geremia, DÓ, nos contraluzes; (ma)RÉ em convulsão; FÁ no parapeito, bela e de cabelo apanhado; e um MI(o) que se impunha, ciumento. E havia Chicago, Rabat, o aeroporto, o táxi, o hotel, as imagens que não entendíamos, os auto-retratos.  


Nesse dia, ele apareceu de câmara fotográfica digital ao peito, nariz generoso, blazer coçado, desgrenhado, grisalho, onde o terno e genuinamente pueril olhar parecia destoar da figura vincada que era. Os fios dos cabelos estavam desalinhados, como se ele tivesse vento nas veias, que levava o turbilhão de pensamentos que o acometiam, em nanosegundos. Para ele, criar era biológico, como ar que respiramos, como se lhe faltasse oxigénio diário caso não o fizesse. 

Hoje o Sassetti foi-se e eu ainda não consegui enxugar o rosto. Há hiatos de tempo da nossa vivência em que nos situamos num portal entre o que consideramos a realidade e a não verdade. Uma espécie de mundo intermédio. 

Estou com as mãos agarradas a um lado e outro, mas os meus pensamentos e corpo estão na ponte suspensa entre estes dois mundos, porque, de alguma forma, ele era parte da família. Era um homem próximo, cuja vivência acompanhava. Até porque uma vez na vida dele era impossível sairmos. E, depois, ele devia-me uma fotografia: a fotografia que me tirou, sobreposta a uma outra imagem do BES Photo, exposta nessa galeria na rotunda do Marquês do Pombal. Era a imagem de uma mulher de cabelo apanhado, escuro, vestindo um xaile preto e um nariz pontiguado, esguio e metido. 


Começou a valsa das coincidências. 


Era como se eu me olhasse ao espelho, mas foi ele quem percebeu das semelhanças. Era como se, também, nesse momento eu tivesse ficado agarrada ao mundo intermédio, dentro do sensor da fotografia: o meu perfil, a minha roupa, mulher, iguais à imagem exposta. Num click, Sassetti imortalizou-me, escrevendo com luz, noutra forma de dançar com a vida, de fazer melodia, parir filhos efémeros. 


Pedi-lhe, várias vezes, "a fotografia magnífica" - como simpaticamente lhe apelidou-, mas era tanto ar naquela cabeça genial, que ele ficou adiando para quando pusesse "a casa em ordem". Cobrei-lhe a imagem, semanas depois, no mesmo dia em que fui ouvi-lo, na véspera de 25 de Abril, em 2009, quando ele tocou em Matosinhos junto com o Mário Laginha. Lembro-me da voz suave e baixa a dizer o meu nome: "Vanessa". Lembro-me do abraço e do ar desse abraço. Lembro-me do arranque dele de carro para regressar a Lisboa e do Laginha gritar: -"Põe segunda [velocidade]". Em primeira ele, o pianista louco, terno, generoso, tentava voar, sim, embora desafinasse um pouco com os pneus, porque voava mais ao piano, e eu nunca tinha visto um piano voar. Continuas aqui. Obrigada por teres partilhado o teu mundo interior connosco. Até à próxima querido Sassetti.





quinta-feira, maio 10, 2012

Sonho Americano

É hoje vilanagem. Ide ouvir. "Sonho Americano" na antena da TSF, para ouvir depois das sete da tarde, a seguir ao noticiário. Grande Reportagem desta nómada das histórias, com sonoplastia de Joaquim Dias. (Esta reportagem foi realizada ao abrigo da Bolsa de jornalismo José Rodrigues Miguéis da Fundação Luso-Americana)

  

quarta-feira, maio 09, 2012

As gaivotas devem estar doidas




Não é preciso abrir a janela para ouvi-las. Oh, oh, uh, uh, uh... Grasnam que nem loucas de cio, pipilam ao copular e, outras vezes, como se o sexo não as satisfizesse, guincham de dor (que também pode ser prazer, vá-se lá saber as práticas sado-masoquistas destas aves marinhas e o que fazem com o bico). Posso jurar que já as ouvi grasnar, mais gravemente, para anunciar que o sexo foi liberado geral na via pública e, com a loucura, estão, pois a ser violadas pelos seus pares. Porém, acredito, tudo isto é psicológico, porque mesmo à bruta elas até gostam. E é isto que nos aproxima a nós, portugueses, destas marias-velhas: andamos a ser comidos à bruta com a palavra efe e até, parece, gostamos. Temos um prazer especial sado-masoquista, mas isto não é da agora, está-nos na genética e uma vez velhos do restelo, sempre velhos do restelo, porque pau que nasce torto jamais se endireita... e por aí vai o cliché dos adágios de portugalidade.
 As marias-velhas andam pois doidas, fazendo ninho de amor onde calha mas, pelos vistos, os telhados das casas ao redor do cafofo, onde temporariamente, às vezes, moro, são o centro do forrobodó. E a insanidade nas gaivotas não é melodia agradável para os ouvidos (faz um pouco lembrar o discurso do Pedro Passos Coelho, na realidade, mas com um pouco mais de coerência).
Estou, pois, convencida de que a invasão de atis começou, fazendo da rua um motel a céu aberto. Este cenário leva-me a uma premissa: as gaivotas são, de longe, muito mais inteligentes que nós: guincham de prazer, fazem amor e não a guerra e, no fim da cópula, talvez encontrem temporariamente a paz, mesmo sem o abraço gostoso de carne-na-carne, que também não podem ter os louros todos. E, apesar de me acordarem às cinco da manhã, quem sou eu para questionar a felicidade da natureza que anda assim em júbilo. Talvez devêssemos aprender alguma coisa com as gaivotas.  

Ai, os demónios

“Escrever um livro é uma batalha longa e exaustiva, como lutar contra uma doença grave. Só se empreende uma tarefa dessas movido por algum demónio que não se pode vencer ou compreender.” George Orwell

terça-feira, maio 08, 2012

segunda-feira, maio 07, 2012

Somos todos um bocado ciganos

O meu querido amigo Manuel Jorge Marmelo tem novo livro e isto é sempre literatura da boa, minha gente. "Somos todos um bocado ciganos" tem a chancela da Quetzal e esta promete ser uma prosa diferente, mas com a exímia forma de brincar com as palavras e tratar a Língua Portuguesa com a nobreza de carácter. 


sexta-feira, maio 04, 2012

Rica, social?

Diz-me Hilda: All I wanna do is have some fun... Chega de trabalho, please!

Quando a vida é o livro (ou múltiplas curtas-metragens)




Ando temporariamente privada do Mal de Montano (como desfia Vila-Matas no livro com o mesmo nome), por razões que desconheço, que é o mesmo que dizer que consinto uma certa desenfermidade de literatura; o que me preocupa. Desenferma - vamos ver se nos entendemos - é no que diz respeito a estar desprovida da enfermidade crónica que me acomete e que se chama Literatura, mas, simultaneamente, contaminada pelo veneno que ela destila em mim. 
E, antítese pela antítese, para simplificar o aparente nó filosófico que aqui se fia em quase pleonasmo metafísico (enferma da desenfermidade), posso dizer que tenho padecido desse mal: não tenho lido nada, deixo os livros empilhar-se na mesinha de cabeceira, na mesa de trabalho, no chão; e por muito nobre que a obra seja para seduzir a minha fraca carne que se perde pela paixão exarcebada que o amor pela arte pode ser, neste caso pela Literatura, não consigo que os meus sentidos se interessem, ultimamente, pelo tempo da leitura, pelo mergulho mágico de entrar num livro. 
Verto esta geremia por aqui uma vez que me apercebo da suspicaz sensação que tenho experienciado, apesar da privação: - e se realmente, fosse eu, personagem de um livro, toda uma paisagem íntima urbana e emocional, veias de páginas, naquele que poderia ser considerada a materialização do efeito metaliterário. Não digam a ninguém, mas imagino-me ninfeta de um livro que se inventa, que se converte em seres múltiplos, consciente disso, com muitos outros dentro de nós próprios. Não digam portanto a ninguém que estes dias ando, eu própria, a Literatura de mim, folheando-me com o tempo a passar. Um dias destes ainda serei cinema, sem erros de raccord, porque a vida destes dias, anda quase em loop de várias curtas-metragens. Venha a longa, com Literatura. 

terça-feira, maio 01, 2012

Hilda: - Stravinsky harmoniza com Tolstoi e a chuva na janela

Encosto a minha cabeça ao Tolstoi. São volumes que me afagam o cabelo e já é tarde. Quase cedo ao mergulho em apneia. Sonharei com livros? Viverei as histórias deles, num sonho? De quantos sonhos preciso para viver um capítulo? Ainda penso nisso, estendendo a suavidade dos meus desejos, mas não te digo, não a ti, nem a ele. 
Será cedo, demasiado cedo. E ainda seríamos cúmplices pela manhã. Pedimos o sumo de laranja, juntos. Bebemos a água. Fomos até lá casa para embalar a noite e, afinal, só queremos água, porque temos sede, dessas palavras: do Bolaño nas prateleiras, dos volumes da obra completa de Jorge Luis Borges, de Pessoa, os ensaios críticos, de Walter Whitman, de Dostoievsky (tinhas "A Submissa" fora das estantes, onde andaria?). A cama está por fazer; andas há dias para lhe pôr novos lençóis, que eu faça o que quiser, que ele também, e afagamo-nos com os livros na cabeça. Agarro a almofada e cedo-me ao chão. 
Há mais um cigarro; e o fumo sorve-o o ar como incenso bruxuleante em direcção ao nada. Há éter e o que somos. Fecho a janela. Começa a luz a subir e Stravinsky com ela, a librar; libra na luz da manhã que se acende e este silêncio de rua deserta, de não-lugar, de pássaros madrugadores. Tão tarde e nós, a três, a sermos cedo e precoces, enquanto olhamos a íris, o nariz, os lábios e destilamos palavras: sedutor, misterioso, pontiagudo, judeu, empinado; com os olhos a enfrentar tempestades e vendavais. Serão os meus, e eu enterneço-me. Juntaria o melhor dos dois e nada a reclamar. Desejo os dois de forma diferente e outro para amar. Perigoso, magnético, uma intensidade, doce. E eu tão sol. Tão nuvens brancas sob o azul techicolor que vi esta semana a 15 mil pés. Estava assim. E falavam. Obturador, lentes, diafragma, e mais de cem câmaras a tanger o olhar; que vês, assim, com o olho direito quando todos vemos com o esquerdo olho. Agora o oboé, entras na dimensão onde queres que viajemos. Ainda lá vamos, mas eu prefiro a chuva lá fora. Ouve, começou a gotejar no vidro. O baque seco no zinco das pesadas bátegas que o céu lacrimeja. Tão deliciosamente confortante e calmante. Como gosto. Gostamos. E, para isso, interrompemos a sede de palavras. Desencosto a cabeça do Tolstói, dos volumes que me afagam a cabeça e venho à tona. Dormimos? Sem malícia e vontades do corpo. A três, vamos dormir a três, um contra a parede, o meio, eu, e mais perto da luz. Tão quente, luz fria e os nossos pés enrolados no fim. Encosto a cabeça à almofada. Tolstoi não reclama e a chuva imita Stravinsky. Vou sonhar.