Há um medidor: farejamos como cães de caça uma boa história, quando lhe sentimos o olor. É um cheiro pegajoso, obsessivo, ao qual ficamos viciados de imediato, sem uma explicação aparente. É um todo sensorial, suspeito, também e demasiado íntimo; porque podemos ficar nus com os cheiros que nos incomodam, que repelimos, ou que nos magnetizam de alguma forma; e eu até sou muito esquisita com cheiros; com o da pele de um homem, com os que derramo em mim, com os que me tocam. Por isso, também tinha de o ser com as histórias que quero contar; que gostaria.
Porém, sei-o, tudo isto é já intuitivo. Posso até farejar uma boa malha a ser esgalhada, mas se não lhe gosto do cheiro, não haverá rinite alérgica ou algodão manso nas narinas que me consiga disfarçar o aroma. E, para as histórias, que é o que interessa nesta prosa, tudo começa assim: há as primeiras notas: ácidas, mas depois doces e ternurentas, como se a história já fosse nossa e, por isso, já consideramos que harmonizamos, em liquefeita poção boticária, os odores. Já imaginamos as perguntas; temos a história na nossa cabeça e esse é o tesão de escrever, de gostar de contar. Eu sou viciada em histórias, em histórias de gente, em histórias com gente, afectos, emoções, amores, desamores, paixões, vidas vividas, daquelas que conseguimos perceber que deixam cunho em árvores maduras. Adoro o som das palavras, o cheiro delas, o mofado, até, e de as pôr em causa, em improváveis combinações.
No enredo das conversas, emociono-me sempre e não consigo escondê-lo. O mesmo vale para o meu ar de asco. Já lacrimejei a entrevistar, já me envolvi demasiado na vida dos outros que estava a contar. A escritora Isabel Allende arranjou o antídoto para esta opressão: deixou de ser jornalista e passou a ficcionar. Gosto de juntar o melhor dos dois.
Ocorre-me tudo isto porque hoje outra Isabel, a viver em Nova-Iorque, e de passagem pelo Porto, pôs em alerta o meu faro. E esta história eu gostaria de contar: há uma mulher, branca, hoje com mais de 80 anos, que ela conhece que foi secretária e confidente da cantora, compositora e pianista norte-americana negra Nina Simone, ou Eunice Kathleen Waymon. Confidentes, amigas, cúmplices. Senti a campainha de Pavlov. Senti. Não me perguntem porquê. Mas talvez seja por isto: porque sou apaixonada por mitos para desmistificá-los (um evidente pretensiosismo), mas, sobretudo, para provar a tese de que a linguagem da criação é pura catárse, e aqueles que a encontram sejam um pouco mais felizes e entendam, num outro plano, o que poderá ser o melhor da vida.
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