terça-feira, novembro 30, 2010

A dança dos Pássaros II

Parece quase ironia do destino que o segundo post deste blogue, após um profundo silêncio, tenha precisamente o mesmo título que o anterior. Posso, no entanto, dar-vos outra música. A das alvoradas na calçada do Rio de Janeiro. Com dança de pássaros. 

Era quase manhã. Aquela luz tímida como quem espreita por trás das nuvens, mas ainda ganha vida, um pouco preguiçosa, enchendo o peito de coragem para acordar de vez. Eu estava bem desperta. Ainda não tinha ido à cama. E resolvera caminhar do Leblon ao Arpoador. Resolvi pôr o Ipod nos ouvidos e havia já tanta gente a caminhar por ali antes que a luz deixasse de ser preguiçosa e pintasse com viço o azul-céu-límpido pincelado por mãos invísiveis, ou lá quem se encarregue de pintar amanheceres assim. 

Esperei pelo lugar ideal para me sentar na areia e descalçar as sandálias, e que terá sido já no fim de Ipanema a querer ser Arpoador, antes de virar Copacabana. Galguei a areia lentamente. Já ouvira não sei quantas músicas, e o nascer do dia estava já menos preguiçoso, de olhos despertos, mas como quem ainda se enrodisca nos lençóis antes do impulso que nos arranque da cama. Como eu. Não saio dela de rompante. Fico sempre a namorar o cheiro da noite embalada e o quente da almofada que sabe mais segredos do que eu. 

Sentei-me. Havia uma pequena duna que me separava de um laguinho formado pela investida nocturna do mar. Essa imensidão era um verde irrepreensível, límpido, matizado ao fundo de azul-claro. Mais além, um cobalto enganador pela profundidade de campo da cor que o olho nu não alcança. Apenas a silhueta das três ilhas que nunca me lembro de lhes deslindar, finalmente, o nome. Por afinidade, chamamos-lhes as Berlengas cariocas. 

Havia a espuma, escorreita, liquefeita na areia final, cor-camel. Um pouco mais clara nos meus pés que se enterravam. Até que começou o espectáculo. Estava na primeira fila. Um espectáculo só para mim, gratuito. Trazido pela Alvorada. Do lado direito, ao fundo, a silhueta dos morros, com nuvens baixas a afagar as laterais montanhosas. Do lado esquerdo, o sol a espreitar numa aberta de nuvens. Em baixo, a pedra do Arpoador (sofá de pôres-do-sol incríveis!). Esta cor ténue de dia ainda a alvorecer preguiçoso. 

E a dança dos pássaros. Disse-o: o meu ipod estava nos meus ouvidos. O que significa que só eu ouvia. E só eu via aquilo que começou no céu. Foram os olhos que me levaram até lá quando ergui o pescoço para ver mais alto. Podia jurar que as gaivotas, às centenas, apercebi-me, dançavam só para mim a mesma música que ouvia: "The Astounding Eyes of Rita" de Anouar Brahem, Klaus Gesing, Björn Meyer & Khaled Yassine. Centenas rodopiavam em redemoinho celeste como se dissessem que são apaixonadas entre si, abnegadamente. Um valsa marítima que só os privilegiados da aurora têm. Aquela valsa no céu não esquecerei nunca. Aquelas cores. Aquela vida. O amor, talvez, devesse ser assim: uma longa e lenta Alvorada com dança de pássaros.

sexta-feira, novembro 12, 2010

porque a vida é uma dança de pássaros

Hilda, o Amor


Até disseste uma vez que querias ser agarrada. Um homem que te agarre como deve de ser. Não com a força de uns braços rijos, como dizia a Leila

-Um cara tem de ter pegada, assim você sabe se é homem de verdade -

mas com o Amor. Que te desse a volta à órbita pessoal e estivesse disposto a tratar-te como uma deusa. Que esteja ali, presente, a conquistar-te nas mais pequenas coisas e, sem que te apercebesses, já estavas para lá do muro do Olimpo. A responder à dívida abnegada. A responder no mesmo fio invisível do dois. Ah, até pensavas que me tinha desgastado da palavra Amor? Que, por isso, a coisa poderia ficar ridícula ao usá-la? Tu, a mulher das cartomâncias e das palavras justas para cada episódio da novela pessoal? Assim, ficas a saber que não há nada que seja ridículo no Amor, Hilda. É genuíno, e no genuíno até podemos ser um pouco ridículos - se achas que a palavra se ajusta - mas não nos podemos queixar de não estarmos a viver e a agarrar o oxigénio com todo o fôlego. É um gerúndio, enquanto dure. Sabes, quando se agarra o oxigênio com todo o fôlego tudo acaba por fazer mais sentido, do que estarmos a lamuriarmo-nos por coisas que nunca aconteceram, nunca vão suceder, ou que poderíamos ter feito. Um paliativo para nos expiarmos.

Queremos a absolvição do que não fazemos, procurando um bode expiatório que nos deixe mais sossegados, porque, porra, dá trabalho ser feliz. Dá trabalho amar. Dá menos trabalho lamentarmo-nos e sermos infelizes. Sobretudo sozinhos. Queixamo-nos, é certo, e tornamos-nos azedos e fazemo-nos mal porque não sabemos o limite (e que tropeçar é normal, mas melhor é aprendermos a levantarmo-nos do chão como profissionais da queda: com sorte tornamo-nos gatos no malho) só porque dá muito trabalho esquecermos todas as diferenças dos outros para vivermos junto; e o orgulho é um cabrão de um mau conselheiro. Deixa-nos sempre no buraco. Para de lá sairmos precisamos quase que nos cavem. 

Haverá alguém disposto a cavar-nos? Não Hilda: tens de esgravatar com as unhas e, por vezes, podes não conseguir de lá sair. Lembras-te da última vez? Terra cor-de-cobre, fofa e por isso revolvida de tantas mãos e dedos, que acabou por se condensar. E tu não conseguias sair de lá. Gritavas, gritavas, mas ninguém te ouvia. Achas que alguém ouve as dores do amor?

Quando disseste que querias ser agarrada era isso que querias dizer: que te levem ao delírio do amar, e que te faça sentir as picadas quentes dos olhos a fechar, porque não se aguenta tanto afecto de olhos abertos. É preciso fechá-los para que os outros sentidos comecem a ter trabalho. Foi aí que me disseste o que ele te disse. Mesmo depois de tantos anos, a cumplicidade está lá, percebeste, nas mesmas pequenas coisas. Mesmo separados, o tempo entre vós não passou. Podem viver separados, sim, até podem, não pensar um no outro, como o fizeram, como o fazem, mas, quando se aproximam, tudo volta, e com isso a cumplicidade. Talvez o amor seja isso, Hilda, não achas? Vá, deves saber! Talvez a cumplicidade seja mesmo isso, não há tempo que lhes desgaste as molas e as dobradiças que os enrosca, mesmo que só oleadas no instante do reencontro. Não foi só isso. Deixaste para o fim o melhor que ele te disse: 

- Tenho saudades de te aquecer o corpo e afagar a alma. Sossegarias, como sempre sossegaste. Perdoa-me!

Ainda lhe respondeste Hilda com um silêncio. Sorriste.

-Deixavamo-nos estar pelo céu um tempo.

Muda, pensavas que ele tinha razão e que, no fundo, não havia nada a perdoar. Vês Hilda, alguém que te agarrasse.   

quinta-feira, novembro 11, 2010

A banda, o Saramago, e a Vanessa...Sim a vaidade, que seja, é para isso que ela serve!

Não entendo por que razão a malta que esteve presente na entrega do Prémio Literário Portugal Telecom ainda não se tinha lembrado de pôr este post da "Banda"... De qualquer maneira, tive o privilégio de ter o Chico Buarque na plateia enquanto eu aparecia na tela no documentário "José e Pilar". Acho que é caso para resgatar um momento pessoal Andy Warhol - não foram 15 minutos, mas vá lá os meus 5 segundos de fama... Saravá! P.S. Depois das mensagens recebidas já tinha direito ao meu momento mete-nojo! E para que conste: o Chico só não me pediu um autógrafo porque eu não falei com a imprensa (É um caso de fina ironia!!!!)




domingo, novembro 07, 2010

O mundo à porta de casa

Podemos sempre ter o mundo à porta de casa e não o percebermos de imediato. Acontece-me, frequentemente, achar que o Porto está mais cosmopolita do que nunca, e que o mundo, as pessoas, as etnias, as línguas, a multiculturalidade, nunca tiveram tanta identidade, e nunca estiveram tão dispersos, como nunca. É o meu lugar de referência, apenas, um pedaço dessa ideia de que o mundo está nos passeios das ruas, basta olharmos com atenção. A ser verdade, a meu ver, ao meu olhar, o mundo está em todas as cidades, em pequenas aldeias, porque somos gente que sofre da mesma maneira. 

Mas é um erro comum e pessoal de contemporaneidade. Não podemos analisar a contemporaneidade fazendo parte dela assim, com esta efervescência como pastilha de Vitamina C que tomamos para ver se a gripe vai (foi o que fiz hoje de manhã, daí a pertinência da palavra). Ou seja, é um erro porque as temporalidades dão pequenos saltos, mas os problemas, as dúvidas, as preocupações são demasiado semelhantes – e com eles as contemporaneidades. Então, ocorre-me que, ciclicamente, o mundo, a vida, o dia-a-dia, as pessoas (e não são necessariamente a mesma coisa) pelo movimento inevitável do fluxo da gente de um lado para o outro, são homens e mulheres sem fronteiras e estiveram desde sempre, desde o boom para seres que respiram e tomam vitamina C efervescente, com o mundo à porta de casa. 

Então, os elementos mínimos de nós, gente, passam sempre à nossa porta: judeus, brasileiros, portugueses, franceses, muçulmanos, libaneses, rock-billies, imitações de Elvis Presley, Emos, Hello Kities, punks, espanhóis, nordestinos, católicos, evangélicos, swingers, vegetarianos, zen budistas, cabalistas, sportinguistas, boavisteiros, actores, actrizes, jornalistas, jornaleiros, homens-do-lixo, moradores de rua, loucos, taxistas... 

Às vezes, penso nisto, e volto a esquecer-me. Como alguém já se deve ter esquecido por mim, noutra contemporaneidade. Relembro-me de cada vez que faço o trajecto inevitável da Avenida Paulista até à porta de casa e me detenho no já ritual cliché, entre amigos, para explicar onde moro, e para explicar a Rua Augusta, como síntese de São Paulo e, no fim das contas, como metáfora sobre o Brasil e da co-existência das raças, tribos, ou lá o que isso seja. O ritual para chegar a casa, paredes-meias num perímetro de 100 metros é este: primeiro passo a Igreja Evangélica, depois o Vegetariano, Cinesesc (sala de de bom cinema alternativo), o bar de swing Nefertiti....e eis a entrada do prédio onde moro. 

Sucedeu que hoje apercebi-me que, no fim das costas, somos todos o mundo, e estamos todos à porta uns dos outros da mesma forma, porque somos todos gente com dúvidas, a tentar encontrar a melhor forma de passar por esta vida como se ela fosse um pouco a nossa casa.  

terça-feira, novembro 02, 2010

Dizem que a forma como escrevemos tem muito a ver com a forma como sentimos. Com a forma como olhamos. Com a forma como caminhamos. Eu sou um bocado sôfrega-contemplativa. Tem dias! E tem dias em que não vejo, faço por não sentir nada, não olhar nada. Só caminhar, para que a janela da cabeça se abra. Caminhar. E, mesmo que não queira, com tanta a gente a roçar o mesmo ar que respiro, lado a lado, eu invento uma outra forma de sentir, ver, olhar. Não invento, faço de conta, para ser rigorosa. Esforço-me mais um bocado para tentar lá chegar.

Sinto, então, o que está dentro da caixinha do pensamento. Transporto-me para lá e tudo ao redor se torna alheio, a não ser que aconteça alguma coisa de maior, que me obrigue a sentir, a ver e a olhar, saindo da caixa da cabeça, para a caixa do que acontece, e onde estou na primeira fila, como fã atenta da minha vida. Nem sempre escrevo o que realmente vejo. A auto-censura silenciosa é uma coisa lixada. A auto-censura insconsciente, uma tirana, é uma coisa obnóxia. Um homenzinho que esfrega as mãos, arregala os olhos e dá uma daquelas risadinhas, em falsete, com os dentes arreganhados. Já estou ouvi-lo, admito. É como quem diz: 
- Já te estou a cortar detalhes das mensagens subliminares que não vês, não sentes e nem porás nunca os olhos em cima. Caminha lá, então!

Eu caminho, vou. A caixinha está lá. Quando quero voltar a ver o que, realmente, acontece à minha volta, penso que tenho de escrever aquilo tudo, tão sôfrego-contemplativo. Chego a casa, sento-me e deve ser defeito de ter estado na primeira fila como fã do filme da minha vida, mas em fast-forward. É um filme de uma vida inteira. Não podemos nunca lá voltar, com rigor. Não consigo transcrever um frame do que vi, senti, olhei. Caminho, portanto. Contento-me em caminhar...