Parece quase ironia do destino que o segundo post deste blogue, após um profundo silêncio, tenha precisamente o mesmo título que o anterior. Posso, no entanto, dar-vos outra música. A das alvoradas na calçada do Rio de Janeiro. Com dança de pássaros.
Era quase manhã. Aquela luz tímida como quem espreita por trás das nuvens, mas ainda ganha vida, um pouco preguiçosa, enchendo o peito de coragem para acordar de vez. Eu estava bem desperta. Ainda não tinha ido à cama. E resolvera caminhar do Leblon ao Arpoador. Resolvi pôr o Ipod nos ouvidos e havia já tanta gente a caminhar por ali antes que a luz deixasse de ser preguiçosa e pintasse com viço o azul-céu-límpido pincelado por mãos invísiveis, ou lá quem se encarregue de pintar amanheceres assim.
Esperei pelo lugar ideal para me sentar na areia e descalçar as sandálias, e que terá sido já no fim de Ipanema a querer ser Arpoador, antes de virar Copacabana. Galguei a areia lentamente. Já ouvira não sei quantas músicas, e o nascer do dia estava já menos preguiçoso, de olhos despertos, mas como quem ainda se enrodisca nos lençóis antes do impulso que nos arranque da cama. Como eu. Não saio dela de rompante. Fico sempre a namorar o cheiro da noite embalada e o quente da almofada que sabe mais segredos do que eu.
Sentei-me. Havia uma pequena duna que me separava de um laguinho formado pela investida nocturna do mar. Essa imensidão era um verde irrepreensível, límpido, matizado ao fundo de azul-claro. Mais além, um cobalto enganador pela profundidade de campo da cor que o olho nu não alcança. Apenas a silhueta das três ilhas que nunca me lembro de lhes deslindar, finalmente, o nome. Por afinidade, chamamos-lhes as Berlengas cariocas.
Havia a espuma, escorreita, liquefeita na areia final, cor-camel. Um pouco mais clara nos meus pés que se enterravam. Até que começou o espectáculo. Estava na primeira fila. Um espectáculo só para mim, gratuito. Trazido pela Alvorada. Do lado direito, ao fundo, a silhueta dos morros, com nuvens baixas a afagar as laterais montanhosas. Do lado esquerdo, o sol a espreitar numa aberta de nuvens. Em baixo, a pedra do Arpoador (sofá de pôres-do-sol incríveis!). Esta cor ténue de dia ainda a alvorecer preguiçoso.
E a dança dos pássaros. Disse-o: o meu ipod estava nos meus ouvidos. O que significa que só eu ouvia. E só eu via aquilo que começou no céu. Foram os olhos que me levaram até lá quando ergui o pescoço para ver mais alto. Podia jurar que as gaivotas, às centenas, apercebi-me, dançavam só para mim a mesma música que ouvia: "The Astounding Eyes of Rita" de Anouar Brahem, Klaus Gesing, Björn Meyer & Khaled Yassine. Centenas rodopiavam em redemoinho celeste como se dissessem que são apaixonadas entre si, abnegadamente. Um valsa marítima que só os privilegiados da aurora têm. Aquela valsa no céu não esquecerei nunca. Aquelas cores. Aquela vida. O amor, talvez, devesse ser assim: uma longa e lenta Alvorada com dança de pássaros.