*Crónica publica no jornal online Porto24 a 15 de Outubro
Tenho uma predileção por labirintos. Vejo-os nas mais diversas
manifestações de vida: nos caminhos anatómicos no cérebro, nas relações
humanas, no amor, nos cursos de água da Amazónia, no pensamento e,
claro, na literatura. Folhear um livro, mais do que o explícito ou
implícito da invisibilidade, ou perscrutar a psicologia de um escritor, é
entrar-no-labirinto-além -de-entre-as-linhas.
Se sublinharmos, infinitamente, a lápis, esses corredores de letras,
intercalando tal qual poetas concretistas brasileiros o rigor da
palavra-após-palavra, criando efeitos gráficos, poderemos deixar-nos
levar, primeiro, por uma espiral. Depois, a tentação será a de subverter
o deslize, em várias direções, ao som do tssssssss da plumbagina. O
grafite parece-me a forma mais sensorial de vivermos o intrincado das e
nas páginas. Esse é o caminho mais evidente para chegarmos ao
auto-labirinto, resgatando dos livros as palavras e os sentidos que
melhor servem o enredo em que nos vamos enovelando. Paradoxalmente,
quanto mais parece que nos perdemos, mais nos vamos encontrando.
Na época barroca, o labirinto era uma forma aberta de interpretação
literária concedendo vários caminhos possíveis para a sua leitura. O que
interessa a esta prosa, todavia, é de como, por vezes, os labirintos se
bifurcam. Tal e qual como me aconteceu.
A palavra labirinto, escreveu Jorge Luis Borges no “Livro dos seres imaginários”, vem do grego lábrys
(λάβρυς), ou machado de dupla lâmina, símbolo encontrado no palácio do
rei Minos, na ilha de Creta, local identificado com o mítico labirinto
projetado por Dédalo e habitado pelo Minotauro.
Em 2011, a propósito dos 25 anos da morte de Jorge Luis Borges,
Veneza resolveu homenagear o escritor argentino, que era apaixonado pela
cidade, prestigiando-o com um jardim-labirinto, que se tornou um dos
maiores do mundo. Para isso, inspirou-se no conto “El jardín de los
senderos que se bifurcan”. São dois quilómetros, com 3.200 plantas,
informações em Braille e, visto do alto, reproduz o nome de Borges de
forma intrincada. Foi projetado nos anos 80, do século XX, pelo inglês
Randoll Coate e concretizado pela Fundação Cini. Quando o avistei em
Abril passado, do alto do Campanário da Igreja de São Jorge, em Veneza,
mesmo aos pés de um primoroso pôr-do-sol, tive a certeza que a
literatura ganhara vida e fazia de mim personagem real e “bifurcada”
daquele labirinto. E que as páginas de um livro que desconheço, com a
minha história (procura-se paradeiro), estaria a ser sublinhado a lápis.
Seria eu a perder-me e a encontrar-me no labirinto, como um general de
Gabriel Garcia Marquez. Ao mesmo tempo que percorria esse borgeano
labirinto de Veneza, pude imaginar que ele iria dar ao labirinto de
sebes do Parque de São Roque da Lameira, no Porto, no caminho para casa.
E, por isso, não precisaria de avião algum que me levasse de volta.
Percebi, nesse momento, por que tenho afeto por labirintos. Eles são
verdadeiros portais do tempo, territórios neutros. E nós, em algum
momento, seres imaginários.
Vanessa
Ribeiro Rodrigues é jornalista, escritora, documentarista, viajante.
Nasceu no Porto, morou no Brasil e na Jordânia. O que lhe
importa é reinventar a cor da linguagem, caçar histórias. É autora do
livro “O Barulho do Tempo” e tem vários contos e poemas publicados em
revistas literárias. Escreve segundo o novo acordo ortográfico.
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