Dona Fátima é competente voyeur de tempos antigos. Só alguém como ela, de costas inclinadas à proa da janela, cotovelos fletidos, até serem dor de tanto pousar no parapeito, dá significado ao verbo janelar. As camisolas estão puídas, por isso, soube, fez uns pequenos travesseiros para se debruçar e não gastar as malhas.
Ela janela, sim, todos os dias, a partir das seis da tarde. Só se ausenta, por 15 minutos, contei-os eu durante as minhas investigações, para um jantar fugaz e frugal. Deve sofrer de gases a pobre mulher, que alguém que come em tão pouco tempo deve ingerir mais ar do que comida. Ou então, pondero, estará entregue à ditadura da ingestão de líquidos, pois não tem como pagar uma dentadura conforme que a possa pôr a mastigar. No entanto, atesto, do alto do terceiro andar, não se sente cheiro de flatulência, e posso garantir que rosas é a que cheira a velha Dona Fátima. Água de rosas.
Ao início quando a vi pela primeira vez, na penumbra da noite, toldada por uma luz esmaecida vaporizada pela iluminação pública, na Praça Carlos Alberto, bem no início da Rua de Cedofeita, senti um gélido arrepio, desses que o mundo fantástico de Mary Shelley consegue sacar. O vulto desta mulher de 60 anos, cabelo grisalho e lambido, a tocar os ombros descaídos e desistidos de se endireitarem, assusta quem ousa levantar a cabeça para cima e perscrutar a janela do prédio branco. Dessa primeira vez, julguei-a um espetro. À segunda vez, como ela permanecesse, percebi-lhe realidade no hábito. As vezes seguintes, estando ela a picar o ponto no seu janelar hábito, só poderia ser verdade que ela existisse.
O Sérgio que trabalha por baixo, também foi responsável por lhe garantir existência, pois, confirma que, não raras vezes, ela desce às 4 da manhã, enquanto ele arruma as cadeiras da esplanada, para meter conversa e lhe contar anedotas ordinárias, onde ela fala em "casais a fazer salada mista".
Uma dessas noites de solidão, acometida por ímpetos de sociabilidade notívaga, Dona Fátima confidenciou-lhe que ouve passos no telhado. Talvez gatos, não serão? Ela assegura que não. Diz que no Inverno são mais fortes. São passos seguros, firmes, e fazem ranger madeiras e telhado. Sérgio ouve-a, céptico, convicto de que a velha senhora lá terá os seus próprios demónios na cabeça, como companhia. A idade avançada, também, pode ter destas coisas: companhias que não existem e nos rondam.
Quando trabalhava, Dona Fátima, foi governanta de família abastada na cidade do Porto. Agora, é governanta da própria janela. Diz conhecer todas as pessoas que passam. Tem até preferências. E, embora, não conheça pessoalmente os transeuntes, tem até razões para não gostar desta ou daquele rapariga, deste ou daquele fulano. É a maneira como andam que lhes pauta simpatia ou antipatia.
Num destes dias levei a máquina fotográfica para poder mostrar Dona Fátima aos amigos. Tentei fazê-lo sem que ela se apercebesse. Não foi fácil. O olhar dela, meio vago, meio perdido e controlador não dava tréguas, tal qual aqueles quadros com olhares que parecem dominar todas as direções, pois qualquer que seja o ângulo para o qual dispersemos, lá estão esses olhos incisivos que tudo vêem.
Mas consegui, bem a via no ecrã da máquina. Voltei para casa. Passei a fotografia para o computador e senti um arrepio. A janela da Dona Fátima estava vazia. Nada. A mesma foto que eu vira e confirmara configurar a senhora em campo, no ato fotográfico, estava agora vazia. A janela aberta como sempre, mas vazia, um fundo negro, vago, fantasmagórico. Gelei. Não queria acreditar no nada dessa foto. Todas vazias. Nada. Foi então que comecei a ouvir passos no telhado.
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