segunda-feira, abril 29, 2013
conto#1 A velha que ouvia passos
Dona Fátima é competente voyeur de tempos antigos. Só alguém como ela, de costas inclinadas à proa da janela, cotovelos fletidos, até serem dor de tanto pousar no parapeito, dá significado ao verbo janelar. As camisolas estão puídas, por isso, soube, fez uns pequenos travesseiros para se debruçar e não gastar as malhas.
Ela janela, sim, todos os dias, a partir das seis da tarde. Só se ausenta, por 15 minutos, contei-os eu durante as minhas investigações, para um jantar fugaz e frugal. Deve sofrer de gases a pobre mulher, que alguém que come em tão pouco tempo deve ingerir mais ar do que comida. Ou então, pondero, estará entregue à ditadura da ingestão de líquidos, pois não tem como pagar uma dentadura conforme que a possa pôr a mastigar. No entanto, atesto, do alto do terceiro andar, não se sente cheiro de flatulência, e posso garantir que rosas é a que cheira a velha Dona Fátima. Água de rosas.
Ao início quando a vi pela primeira vez, na penumbra da noite, toldada por uma luz esmaecida vaporizada pela iluminação pública, na Praça Carlos Alberto, bem no início da Rua de Cedofeita, senti um gélido arrepio, desses que o mundo fantástico de Mary Shelley consegue sacar. O vulto desta mulher de 60 anos, cabelo grisalho e lambido, a tocar os ombros descaídos e desistidos de se endireitarem, assusta quem ousa levantar a cabeça para cima e perscrutar a janela do prédio branco. Dessa primeira vez, julguei-a um espetro. À segunda vez, como ela permanecesse, percebi-lhe realidade no hábito. As vezes seguintes, estando ela a picar o ponto no seu janelar hábito, só poderia ser verdade que ela existisse.
O Sérgio que trabalha por baixo, também foi responsável por lhe garantir existência, pois, confirma que, não raras vezes, ela desce às 4 da manhã, enquanto ele arruma as cadeiras da esplanada, para meter conversa e lhe contar anedotas ordinárias, onde ela fala em "casais a fazer salada mista".
Uma dessas noites de solidão, acometida por ímpetos de sociabilidade notívaga, Dona Fátima confidenciou-lhe que ouve passos no telhado. Talvez gatos, não serão? Ela assegura que não. Diz que no Inverno são mais fortes. São passos seguros, firmes, e fazem ranger madeiras e telhado. Sérgio ouve-a, céptico, convicto de que a velha senhora lá terá os seus próprios demónios na cabeça, como companhia. A idade avançada, também, pode ter destas coisas: companhias que não existem e nos rondam.
Quando trabalhava, Dona Fátima, foi governanta de família abastada na cidade do Porto. Agora, é governanta da própria janela. Diz conhecer todas as pessoas que passam. Tem até preferências. E, embora, não conheça pessoalmente os transeuntes, tem até razões para não gostar desta ou daquele rapariga, deste ou daquele fulano. É a maneira como andam que lhes pauta simpatia ou antipatia.
Num destes dias levei a máquina fotográfica para poder mostrar Dona Fátima aos amigos. Tentei fazê-lo sem que ela se apercebesse. Não foi fácil. O olhar dela, meio vago, meio perdido e controlador não dava tréguas, tal qual aqueles quadros com olhares que parecem dominar todas as direções, pois qualquer que seja o ângulo para o qual dispersemos, lá estão esses olhos incisivos que tudo vêem.
Mas consegui, bem a via no ecrã da máquina. Voltei para casa. Passei a fotografia para o computador e senti um arrepio. A janela da Dona Fátima estava vazia. Nada. A mesma foto que eu vira e confirmara configurar a senhora em campo, no ato fotográfico, estava agora vazia. A janela aberta como sempre, mas vazia, um fundo negro, vago, fantasmagórico. Gelei. Não queria acreditar no nada dessa foto. Todas vazias. Nada. Foi então que comecei a ouvir passos no telhado.
sexta-feira, abril 19, 2013
Crónica Bairro dos Livros/Semanário Grande Porto
Máquina do tempo
(Crónica publicada originalmente no Semanário Grande Porto,
pág. Bairro dos Livros, a 12 de Abril de 2013. Esta é uma iniciativa
Culture Print). O Podcast respetivo seguirá dentro de algumas horas.
Vanessa
Rodrigues
Não
usa carros ultrassónicos, nem saltos quânticos, ou sequer
transmigrações da alma. É mais simples do que se imagina: a
técnica que a Lis usa para viajar no tempo é a do portal
alfarrábio. Perscruta sinuosas reentrâncias das estantes e consegue
fundir-se de tal forma com os livros que, num ápice, é magnetizada
pelos poros livrescos, por onde respiram gerações de palavras.
Recentemente desenvolveu outra façanha, que carece, porém, de
reconhecimento académico: desaparece no labirinto de estantes em
casa dos amigos. Pior: entra-lhes nas prateleiras cerebrais para
sumir-se nas obras que eles descobrem. Foi assim que eu, ao abrir o
livro “Os
antepassados de alguns cinemas no Porto”,
de Alves Costa (1975) dei com uma fotografia de Lis vestida de homem,
bigode aprumado, paletó, relógio galante e ar dandy, a comprar, num
quiosque, moedas secretas para entrada no cinema Passos Manuel.
Cinematógrafo esse que, à meia-noite, dispensava as mulheres
casadas, mudava de público e transformava-se em music-hall só para
homens.
“...vinham
as espanholas saracotear-se (...) e algumas meninas muito conhecidas
e apreciadas temperar a solidão do forasteiro isolado.”
Bailarinas,
charutos, whisky e alguma safadeza. “No
primeiro decénio do século XX, o Porto tinha teatro de zarzuela,
teatro lírico, teatro de revista, teatro declamado, espectáculo de
variedades, concerto musicais, circo e cinematógrafo”.
Como
antropóloga diligente tomou notas mentais e chegou mesmo a
divertir-se com o fato de ninguém ter dado pelo embuste, que isto de
trazer o futuro para tempo passado e de viver o que já foi, através
dos livros, pode mudar o curso do tempo. Não é por acaso que,
depois de regressar, Lis sentiu um vazio nostálgico: Onde
esmoreceram os dias de variedade cultural, a arma fina contra
ditaduras liberais?
F.A.Q: Onde comprar "O Barulho do Tempo"?
É Primavera, cúmplice de relva fofa, época
oficial para cheirar flores, namorar, LER. "O Barulho do Tempo" cabe num
bolso, numa mala, numa mão e gosta de ser folheado. Tem cheiros,
texturas, densidades, levezas. Para adquirirem o pequeno livro
da Van podem fazê-lo através do email da editora:
cultureprint@gmail.com ou dirigirem-se à Praça Coronel Pacheco, n.2, no
Porto e invadir a Culture Print.
Gostamos de celebrar a vida com um certo lirismo.
"Venda-me os olhos
Guia-me devagarinho
Pode ser com o silêncio
Ou o rasar dos pés no chão
Descalça?
Mais à direita
Está escuro
Mas luz depois da venda"
Excerto do Poema "Vendar-te"
Gostamos de celebrar a vida com um certo lirismo.
"Venda-me os olhos
Guia-me devagarinho
Pode ser com o silêncio
Ou o rasar dos pés no chão
Descalça?
Mais à direita
Está escuro
Mas luz depois da venda"
Excerto do Poema "Vendar-te"
Contos Plausíveis, Carlos Drummond de Andrade
O Rui Manuel Amaral e esta vossa aia soltarão o Carlos Drummond de Andrade e seus "Contos Plausíveis", no Gato Vadio, no dia 27 de Abril, às 17h, Porto. Cruzaremos contos, sentidos, parangolés. A vadiagem nunca foi tão boa, a sacanagem nunca foi tão erudita e a literatura tão boémia, para mim, num sábado à tarde. Venham que haverá doçura nas palavras.
quinta-feira, abril 11, 2013
"O Barulho do Tempo" em movimento
Há cinematógrafo no botequim da Van: o filme que promove o livro "O Barulho do Tempo", com a chancela do Bairro dos Livros, pela editora Culture Print estreou hoje na internet.
Misto de curta de ficção experimental e booktrailer com o sussurro temporal. Astúcia profissional de Ana Sofia Pereira (realização e produção), o bisturi de Paulo Moura (edição), a beleza do olhar de António Morais (direção de fotografia) e som, voz e textos da suspeita do costume i-van. A ideia original é nossa e estamos viciados. Bela e potente tribo que se juntou! Saravá!
"O Barulho do Tempo" em movimento from vanessa rodrigues on Vimeo.
quarta-feira, abril 10, 2013
Biblioteca Bairro dos Livros para os Utentes do Hospital de Santo António, no Porto!
É uma bela iniciativa da Culture Print e uma causa nobre.
Ajude-nos a construir a Biblioteca Bairro dos Livros para os Utentes do Hospital de Santo António, no Porto!
Deixe na rede de livrarias aderente os livros que já não usa ou que tem repetidos lá em casa e faça do Bairro dos Livros também um bairro
solidário. Uma só obra já faz a diferença para quem está a receber
tratamento no Hospital e sabe que encontra num livro uma boa companhia.
A
sua doação ajudar-nos-á a criar uma Biblioteca Bairro dos Livros, que
será usada pelos utentes do Hospital de Santo António, no Porto, nos
espaços do: Hospital de Dia, Consulta Externa e CICA. Numa primeira
fase, o projecto começará por disponibilizar livros nos espaços do CICA e
Consulta Externa Pediátricos.
Este projecto é apoiado pela Cultureprint, Crl, pela Livraria Lumière e pela Swedwood/ IKEA.
Perguntas e Respostas
Que tipo de livros devo doar?
Todo
o tipo de livros: Romances, Ficção, Biografias, Contos, Poesia, mas
também livros de História e Literatura Infantil ou Banda-desenhada.
Os
livreiros responsáveis pela gestão da Biblioteca encarregar-se-ão de
fazer chegar cada tipo de livro ao espaço certo, organizando os títulos
por área e por público-alvo.
Onde posso entregar os livros que já não uso?
Pode
deixar os seus livros nas livrarias do Bairro aderentes à iniciativa:
Lumière, In-Libris, Poetria, Papa-Livros, Manuel Ferreira, Loja da U.P.,
Utopia e Unicepe. Saiba como doar aqui.
Como chegam os livros à Biblioteca?
A
Livraria Lumière e a cooperativa cultural Cultureprint são responsáveis
pela recolha, uma vez por mês, dos livros doados, que são,
posteriormente, entregues no Hospital de Santo António.
Quem pode requisitar um livro da Biblioteca Bairro dos Livros?
Qualquer
utente do Hospital de Dia, da Consulta externa e do CICA, no Hospital
de Santo António, é livre de requisitar qualquer obra, de acordo com as
regras de utilização definidas pela instituição.
Como posso esclarecer questões relativas à doação de livros para a Biblioteca Bairro dos Livros?
Se ainda tiver alguma dúvida, basta contactar-nos através do endereço de email bairrodoslivros@gmail.com ou da página de Facebook do projecto, em www.facebook.com/ bairrodoslivros.
quinta-feira, abril 04, 2013
"O Barulho do Tempo", Vanessa Ribeiro Rodrigues (editora Culture Print)
Dia 13 de Abril, sábado, às 21h30, nos jardins do edifício PINC-UPTEC, sede da editora Culture Print, no Porto, Praça Coronel Pacheco, Uma festa, poesia, música e memória para "O Barulho do tempo" (Culture Print), o meu primeiro livro de poesia, que reúne, ainda, algumas fotografias e um áudio-livro para manter a chama acesa. São aforismos, pegadas e caminhadas, o palpitar da terra, o sorriso das gentes, uma profunda vivência dos dias, da passagem de tempo, das texturas que as estações nos deixam, renovando, amadurecendo. Este é um livro feito ao longo de uma feliz caminhada, amando, abraçando e, sobretudo, aprendendo as lições sábias que a vida tem para nos dar. Por vezes a duras penas, com educação pela pedra, telúrica, outras vezes com sol e fotossíntese. Sobretudo fotossíntese.
"O Barulho do Tempo" é o fim de um ciclo, começo de outro e tem a chancela "Bairro dos Livros", pela editora Culture Print. O belo design de capa é da Catarina Rocha, a partir de uma foto minha, a curadoria e edição de Minês Castanheira e Isabel Rocha.
Neste dia, haverá POESIA com Celeste Pereira (Edita-me) e Flávio Hamilton (ator cabo-verdiano); danças africanas, música portuguesa com Rui David e bossa nova, nova bossa com Tete Chrystine. Vai ser bonita a festa!
E desde já o meu grande e sincero Muito Obrigada a todos os meus amigos e familiares que tornaram este momento possível, sobretudo às meninas da Culture Print, Isabel Rocha, Minês Castanheira e Catarina Rocha, que se têm dedicado com carinho e muito profissionalismo e são responsáveis por este desafio de publicar. Sem este incentivo, não tenho a certeza se alguma vez teria tido coragem.
Para mais informações seguir por aqui
e por aqui
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