O Sá Carneiro morreu a 4 de Dezembro e a minha avó voltou de França a 16. Nem vou confirmar a data inicial porque confio na memória dos 89 anos de sabedoria que a põem a comer pão com queijo brie, depois de almoço, como se não houvesse amanhã. Não sabemos, talvez não haja. Hoje importa porque estamos cá. E depois atira com o naco de bairrada que lhes levei (porque o meu avô está atento ao pão e à conversa) para o lado, num zás manual, porque lhe digo que está a abusar. Ri-se da minha repreensão.
- Então, é para não comer mais!
Segundos depois está a comer as paciências para acompanhar o café. Afinal, não é pão. São paciências. Sabe rir-se e diz que ama a vida. Por isso gostaria de viver para sempre. Mesmo com a dor na perna, mesmo ouvindo mal, por causa de uma constipação que lhe pôs os ouvidos a sangrar, um mês antes de Sá Carneiro morrer, quando ainda estava em Paris, quando ainda tinha de atravessar o Parque Monceaux de mão no terço, dentro da bata, para afugentar o medo que alguém lhe fizesse mal às cinco da manhã. Imagino o frio gelado de Inverno a gretar-lhe o nariz grosso e grande, hoje adornado de rugas marcadas, que se riem muito com ela, quando se ri. O meu avô diz que a história deles dava um romance. Todas são, diz-lhe a minha tia. E ele sai para ir espiar a galinha pôr o ovo e tirá-lo antes que ela o coma. Missão cumprida. A avó chama agora a galinha fraquinha que anda no quintal. Coitada, é franzina, quase sem penas. Começa a piar, ela, para a galinha, a testa enruga-se, o nariz enruga-se. A galinha enrugada e franzina vem a correr, como respondendo ao chamado. A avó atira-lhe com a casca do brie. A minha avó voltou de França ainda não era eu nascida. Espero aos 89 anos estar a chamar galinhas de testa enrugada a amar a vida assim e a abusar do pão com brie.
2 comentários:
Parabéns Princesa por este excelente texto. É o retrato fiel das nossas conversas quando estamos juntos, mais concretamente nos almoços repetidos à semana. As rugas são também, e muito, as marcas dos sorrisos para com aqueles que amam. Que felicidade e privilégio ouvirmos o passado em tempo real.
Obrigado por este excelente registo.
beijocas
Obrigada papi. Quem sabe estas histórias, um dia, não dão mesmo um romance. Beijocas
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