Passei a tarde no hospital. A dor de ouvido não passa, piorou, a garganta está cúmplice das ligações enfermas de otorrinolaringologia pessoal, e a febre tomou conta deste corpo. Com a espécie de folga que me saiu na rifa durante a tarde de hoje, fui até ao Hospital das Clínicas, a arrastar este corpo de metro, chuva e frio, rabugenta por ter de passar o que me resta de descanso numa sala cinzenta de hospital, sozinha. Eu própria não estava com melhor cor. Duvido se estaria no mundo dos vivos. A língua agarrou-se à geografia da febre e os meus olhos vermelhos não enganam o mais desprevenido dos médicos.
-A senhorita tem dormido bem? (Não, claro que não, não se nota?)
Devo ter esperado umas três horas até ser atendida. Sentei-me, abri o livro e ouviu-se:
-"Você pode calar a boca. Desde que aqui cheguei você não parou de falar. Cale-se, Cale-se, Cale-se".
As palavras ecoaram na sala quase vazia onde esperei por quase três horas. Estes foram, talvez, os centésimos de tempo mais animados naquela sala cinzenta. Olhei de esguelha: vi uma mulher a levar soro, envergando uma bata de médica. A enfermeira que ela mandava calar saiu da sala e mandou o recado para alguém:
-"Você se importa de ir ver o que se passa com a médica lôquinha? Ninguém merece".
Tirei o meu olhar de esguelha, enquanto a médica "lôquinha" já me fitava.
Olhei para a capa do meu livro e não tive certeza se não seria tudo fruto de uma alucinação pessoal, imposta pela doença, e aquilo não passava de um filme imaginário que o meu cérebro me infligia: "Diário do Hospício" e "O Cemitério dos Mortos" de Lima Barreto. Foi este o livro que atirei para a bolsa antes de sair de casa, como paliativo para a espera que já sabia sair-me na bola de cristal desta tarde modorrenta. Foi este o livro que folheei e deitei os olhos vermelhos, enquanto esperava - e o ouvido latejava, e a febre arrepiava o corpo.
Então, pensei que tudo isto era um sonho. Outro. Ou um pesadelo, que é um sonho mais pesado. Depois de quase três horas ouvi o meu nome ser pronunciado no corredor, ecoando.
-Diagnóstico: Está com uma infecção viral no ouvido e na garganta, por isso a febre. Muitos líquidos, anti-inflamatório, e descanso.
Não consegui discernir se era verdade ou mentira o que ouvia. Outra alucinação? Mas só sei que o pesadelo começa aqui. Descanso: só depois de segunda de manhã. Vou dormir, a ver se a dor passa, para amanhã fingir que estou bem, que nada se passa e que a minha voz estará maravilhosa e, quem sabe, os olhos menos vermelhos. Quem sabe poderei fingir que tenho outra carcaça, ou que outra Vanessa, sem dor, habita aqui.
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