segunda-feira, outubro 11, 2010

Apologia dos Sobreviventes e o início de um inferno implacável para fugitivos

De imagem inalcançável, suspensa, longe, detida na linha imaginária. A parede pintada descascada. A janela aberta, trespassada de vento, areia, silêncios. Ela, sentada na cadeira de plástico de alpendre, lê “A invenção de Morel” de Adolfo Bioy Casares. 


Descansa as pernas na outra cadeira de plástico, onde lhe repousa o mundo. Todo o mundo está naquelas pernas, com a quilometragem do que viveu em caminhadas, ainda que nem sempre as tenha movido de si para as percorrer. Silencia-se. Há a janela. Se estivesse numa deserta ilha poderia estar mais consigo do que quando a ilha em si se desertifica. Seca. Nunca seca. Muda-se. Que ilha é agora, não saberíamos dizer. Quantas ilhas pode ser um homem, não saberemos nunca.

Repousa o livro na mão direita, agarrando as páginas amareladas com o polegar. Mantém a abertura com a mão esquerda, mais solta. E, talvez, menos vivida. Uma mão que é menos usada, não pode ter vivido mais, mas com certeza poderá afagar a outra quando se sentir cansada. A vida é, raramente, ambidextra. Raramente. O fio ténue do balanço exacto não é fórmula que se saiba decifrar. 

Leu o prefácio de Borges. Cansou-se. Leria sobre Casares depois, no final, quando já tivesse tirado as ilações pessoais, para poder ler o que os outros escrevem sobre outros e que, por mais brilhantes que sejam, não deixam de nos turvar os sentidos. Lia em inglês, pensava em inglês, mas não sabemos no que se transformou depois o pensamento. Leu isto e deteve-se a olhar a imagem inalcançável, turvada, pela garoa do fim da manhã.

I am writing this to leave a record of the adverse miracle. If I am not drowned or killed trying to escape in the next few days, I hope to write two books. I shall entitle them Apology for Survivors and Tribute to Malthus. My books will expose the men who violate the sanctity of forests and deserts; I intend to show that the world is an implacable hell for fugitives, that its efficient police forces, its documents, newspaper, radio broadcasters, an border patrols have made every error of justice irreparable”.





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