Ele estava sentado com os pés em cima da mesa. Sapatos de sola gasta, das muitas noites de insónia, a calcorrearem os prostíbulos da Rua Augusta. Não eram os pés. Eram os próprios sapatos que tinham alma própria que o arrastavam para lá. A luxúria dos olhos famintos garantia-lhe o entorpecimento que precisava para entrar num transe doentio de imagens lânguidas, putrefactas, arrastadas às profundezas de vários cigarros que lhe carcomiam o sistema nervoso central, periférico e a espinha, como se gastasse toda a energia num orgasmo visceral. Tinha nojo delas. Das mulheres roçadeiras de postes, portas, homens, carros. Tudo o que lhe parecesse uma extensão melada, de marmelada, de “sem-vergonhice” gratuita. Mas mesmo assim tinha uma necessidade doentia por esse submundo escoriado. Não era melhor que ele. Aliás, poderia ser um perfeito habitante dessa cidade invisível. Ele, sim, poderia ser um exemplar “cidadão-escumalha”, um hediondo representante da rua néon que promete sexo sem limites. E ele tinha um: os sapatos não o levavam a outro lugar, senão aquele.
Por isso, os sapatos eram ele. Ele era um pedaço desses sapatos enqueijados, cujo prazo de validade expirou no momento em que os calçou. Lia o jornal do dia anterior. Um atraso explicado pela necessidade de encontrar anúncios repenicados de pessoas que estavam desaparecidas e que ele, com aquele sexto sentido apurado, o mesmo do orgasmo visceral, sentia que podia encontrar, desde que tivessem desaparecido, no máximo até 24 horas. Sentia-lhes o cheiro. Sabia, pelos traços do perfil do desaparecimento, que a maioria delas ia, precisamente, aterrar, com um bilhete de ida, nessa rua (des) vergonhosa que ele tanto queria possuir, todas as noites, de uma só vez, em cada beco, cada carro, em cada quarto em que os gemidos atiçavam a escala de Richter, num fingimento retardado de performances repetidas. Conhecia-as todas. Até as tinha anotado num caderno.
De repente, a luz começou a tremelicar, imitando os gemidos de Richter. A lâmpada fundiu. Escureceu. A porta abriu-se. O vidro partiu. A placa fosca envidraçada deixou de segurar o capricho: “Raimundo Silva”, detective privado de causas perdidas, hediondas, até mesmo depravadas.
A mulher nem se deu conta da força com que fechou a porta. Pediu desculpa, vergonhosamente! Naquela voz andrógina disse: “Preciso da sua ajuda! Os meus sapatos trouxeram-me até aqui. Acho que desapareci desde ontem e não me consigo encontrar. E o meu bilhete é só de ida. Como faço para voltar?”
Olhou-a. Reconheceu-lhe o cheiro e o gemido! Expulsou-a da sala. Recolheu os vidros. Olhou-se ao espelho. Lavou as mãos e, depois desse momento, reformou-se,definitivamente. Deixou de frequentar a rua pestilenta. E trocou de sapatos. Jurou a si próprio que nunca mais compraria sapatos na loja daquela mulher. Hoje, como hobby, dedica-se à escrita aprimorada de anúncios de jornais sobre pessoas desaparecidas. Não é ele. São os sapatos que o arrastam até lá!
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