quinta-feira, novembro 19, 2015

O feitiço


Há qualquer coisa de esperança na luz do fogo. Apesar da raiva destrutiva. Apesar do rasto avassalador. Quando o escritor Ray Bradbury escreveu Fahrenheit 451, remetendo para a temperatura a que ardem os livros, e colocou uma cena em que os homens falam, de cor, sobre eles, à volta de uma fogueira, porque a censura condenara as obras a ser pó, pela língua da labareda, ele queria era metaforizar a esperança. Quando Guy Montag, o bombeiro dissidente, protagonista do romance escrito em 1953, os encontra, clandestinos, a falarem dos livros que leram, é como se sentíssemos, que apesar da desesperança, há uma perspetiva. 

Se quando nos tiram todos os livros – privando-nos da sabedoria escrita e desse alicerce cinzelado pela mão do Homem-, algo acontece nos mecanismos de resistência de alguns homens que, com avidez e sageza, se unem à volta de uma fogueira, é porque há uma possibilidade. É que eu vejo o horizonte dessa humanidade sempre que estou à volta de uma fogueira. Uma espécie de feitiço em que os homens são somente homens, em que as mulheres são somente mulheres, estendidos à condição de existir, ali e naquele momento, usando a mais bela das tecnologias: as vivências como repositório de aventuras e relatos de ser. Talvez seja isso o que nus realmente possuímos. 

E esse feitiço acontece-me desde pequena. À luz de fogaréus respeitosos no chão da casa dos meus bisavós fiz a minha entronização. Sem televisão e depois de sopas de cavalo cansado, contavam-se histórias reais, misturadas como o imaginário popular e telúrico. Façanhas de homens que chegavam a casa com coelhos à cintura porque a caça fora boa; histórias de mulheres que criaram filhos sozinhas porque os homens à guerra foram e lá ficaram; relatos de noites em branco por causa dos lobos; contos de resistência, como o fogo. Talvez por isto, hoje, sempre que me sento ao redor delas, não resisto a perguntar aos que lá estão:

- Lembras-te de alguma história?

É como se padecesse de uma maleita dos bichos carpinteiros pelo corpo inteiro, como se a voz fosse mais rápida do que a timidez. Aconteceu a semana passada, enquanto a Sara e o Anselmo alimentavam o fogo para as castanhas e os pimentos da horta do Éden, esse Jardim do Pólo de Indústrias Criativas do Porto. Havia folhas secas a estalar como ingredientes nobres dessa labareda; havia cheiro a aldeia nos nossos cabelos, na nossa roupa, nas nossas mãos. Havia tocos secos acamados no meio do carvão. E nós a costurar no ar os fios invisíveis que deixam essas estórias soltas, pelo éter. Uma espécie de liberdade bruxuleante. 

Numa horta de um pólo de indústrias criativas creio que não poderá haver algo mais de tecnológico do que esta condição humana do que a magia da fogueira e da memória oral à volta dela. Apesar de o rasto das gestas narradas não serem visíveis, creio que é a única coisa que o fogo não destrói mas motiva: o feitiço inextinguível de sermos natos contadores de histórias.

*Crónica publicada a 19 de Novembro de 2015 no Porto24

domingo, novembro 01, 2015

Domingos suburbanos

Podem vir as HDDSLR. Podem vir os iphones. Podem vir as compactas com os seus invejáveis píxeis. Fui ao resgate. Naufragada no armário, tal qual Rapunzel esquecida, ou carcerária do esquecimento (mea culpa, seduzida pela tecnologia da imagem like a candy shop), a minha "velha" Nikon D70 (com todas as suas limitações etcetera e tal) voltou ao activo. Diz que é uma espécie de resgate vintage. É isso: a D70 virou vintage. E saiu à rua numa tarde de domingo assim; suburbana! Back to war. The hunter is back!Ladies and gentleman a vida num domingo ao fim da tarde, pelo Porto.