Será que há no mundo cidade com mais ilhas do que o Porto? Pedaços de
terra intersticiais da anatomia citadina em terra, ligações insulares
que provam que, afinal, o homem pode ser uma ilha?
Por Vanessa Rodrigues
*Crónica publicada no Porto24 a 28 de Janeiro de 2015
Por Vanessa Rodrigues
Não se sabe ao certo quantas centenas se escondem, isoladas, por trás
de outras casas. São portões mistério de humanidade, aglomerado de
habitações simples que brotaram da urgência em alojar a mão de obra no
século XIX. Os herdeiros, que continuam a história, são parte do ADN da
Invicta, um repositório de memória, de herança daquilo que somos. É o
caso de Rosa, Ana, Luís e dos casais Maria Eugénia e Aloísio; Manuel e
Júlia, moradores da ilha da Bela Vista, na rua Dom João IV.
Rosa, 69 anos, viúva e rebelde, voz grave, “foi feita” no quarto onde
agora dorme. O pai foi afinador de teares numa fábrica portuense.
Lembra-se do dia em que comprou um biquíni e como convenceu o marido a
usá-lo. É “feliz, muito feliz”, na ilha, e tem saudades do barulho da
“canalha”.
Já Ana Oliveira, a fadista de cabelo alvo e mãos de afagar gatos, 85
anos, saudosa do tempo em que cantava, nasceu na casa 10. Aos nove anos,
já “andava a esfregar escadas e a acartar o balde da água”.“Cada caneco era um tostão, mas à vezes caía o caneco e ficava sem o caneco e sem o tostão”.
Escreveu muitas letras de música e poesia, só para ela. Começou a
cantar na rádio Festival, antes de ser a rádio Festival, e foi a voz do
Café Sanzala.
– “Todos os domingos de manhã, a comunidade juntava-se para me
ouvir na rádio e cantarolava: “Vem está marcado/é o café que nos
convém/não há outro no mercado/que ao tomar/saiba tão bem/mas que
cheirinho/que perfume que exala/ café sempre fresquinho/que se vende na
Sanzala/na sua mesa/tenha sempre um bom café/porque o acha com
certeza/famoso como o Pelé.”
A vizinha insular de Ana, Maria Eugénia Moreira, tem sete décadas de
vida, cabelo curto e grisalho, olhos de menina. Começou a trabalhar aos
dez anos. Não podia sair de casa para brincar. Na “mocidade” foi a
bailes com gira-discos e conheceu o marido, Aloísio. Nunca dançaram
juntos. Aloísio foi depois para o ultramar e Maria Eugénia foi a sua
“madrinha de guerra”. Ele rendeu-se e pediu-lhe namoro por carta. Ela
até o achava “jeitoso”, “encanadinho”, mas “teso”. Zangaram-se, porém
uma amiga juntou-os : “Vou-vos apresentar ao amparo da vossa velhice”.
Estão juntos há quatro décadas. Ele foi atleta, tipógrafo e, ao contrário da mulher, brincou até fazer asneiras: – “Arranjámos
uma tábua dos andaimes, passávamos cascas de banana, laranja e pêra na
madeira, para lubrificar e, do início da rua escura até à
Ribeira, deslizávamos a alta velocidade. Eu parti a cabeça umas 15
vezes”.
Para Manuel e Júlia, a ilha é um “paraíso”. Ele trabalhou com artes
gráficas, esteve fora do país, agora está reformado. Ela trabalhou num
infantário. O Luís, 43 anos, o mais novo desta prosa, também se recorda
do tempo dos tostões, das festas, da algazarra das crianças e do
aconchego de ter uma casa, apesar de estar numa “ilha quase deserta”.
Uma vez juntou o Cavaco Silva e o Mário Soares.
– “Fui segurança da Fundação de Serralves e, numa cerimónia
pública, o quadro elétrico falhou. Eles estavam lá. Fui eu quem puxou a
alavanca do quadro de eletricidade que estourou, numa grande confusão,
por isso os seguranças tiveram de pôr os dois políticos no mesmo carro”.
P.S.: Testemunhos recolhidos por mim, pelo
Daniel Brandão, Maria Camps, Wouter De Broeck, Ana Clara Roberti,
Ricardo Coelho, Rita Costa, André Rocha, Ana Patrícia dos Santos, Daniel
Rodrigues, Joana Costa, Maria João Pereira, Rute Febra, Priscilla
Davanzo, Tiago Dias dos Santos, com apoio do arquiteto Nicolau Brandão e
das assistentes sociais Inês Lima e Ana Vieira, no âmbito do Citizen
Lab: Audio+Visual Storytelling, Future Places 2014. O lab deu origem ao projeto documental Citadocs (sobre, para, por cidadãos).
*Crónica publicada no Porto24 a 28 de Janeiro de 2015