O meu professor de Árabe tem um trauma de infância. Esqueçam os
monstros, os bichos-papões, os polícias, os pais severos e a educação
pelo cinto. Aprender a caligrafia arábica era o pesadelo de todas as
crianças árabes. Começava com a pena a mergulhar no tinteiro e o treino
diligente, primeiro, para que não se derramasse uma gota que fosse
daquele líquido negro que viajava no bico do utensílio afiado que iria
materializar a linguagem. Ofício para exímios, portanto. Depois, a
verdadeira prova: escrever da direita para a esquerda sem borrar
letra-a-letra, o que se acabava de escrever. E, nem sempre, o
mata-borrão obedecia, pelo contrário, parecia fazer troça dos mais
ingénuos. O melhor aluno era aquele que conseguia a proeza dos desenhos
alfabéticos sem mácula no branco onde se escrevia. E tudo isto com toda a
delicadeza que as letras árabes impõem. Desenhos simbólicos que parece
que dançam no papel. Porém, uma coisa é a letra árabe isolada, outra é a
ligação que essa letra tem com a letra seguinte para formar uma
palavra, e que pode ter ou não movimentos (harakat) – mais ou menos o
equivalente às vogais. Isso implica símbolos específicos em cada letra.
Ufa! Eu explico: imaginem a palavra casa, que em árabe diz-se “bayt”,
isto é بيت , mas se quisermos as letras isoladas teríamos B= ب Y=ي T= ت
É menos complicado do que aquilo que parece. Mais complexo era, sem
dúvida, o exercício que deixou marcas na memória de Abdel, o professor.
Um exercício para expor desastrados. Eu teria com certeza falhado a
tarefa. Até porque, se bem me lembro, a minha perícia para escrever em
cadernos de duas linhas estreitas, para treinar a caligrafia
(lembram-se?), era já per si, um pesadelo a que tentava esquivar-me com
técnicas avançadas: Ah! Esqueci-me! Debalde. Os complôs doméstico e
escolar estavam instaurados, como conspiração de espionagem apertada. As
técnicas de moralização também não eram as melhores e, entre ouvir que
tinha uma caligrafia “pouco apresentável” a um “horrível” sincero de
alguém, tentei, pois, ser mais diligente, surripiando a caneta de tinta
permanente do meu pai. Já que tinha de escrever, que fosse com uma
novidade. Achei mágico o mergulho daquela ponta afiada num frasco de
tinta índigo. Fiz por isso, um admirável e competente borrão, que hoje,
se o tivesse guardado, poderia expor, quiçá, numa galeria de arte. Ou
até mesmo teria, eventualmente, inventado um novo e pioneiro teste de
borrão psicanalítico, muito útil aos seguidores do senhor Hermman
Rorschach, psiquiatra suíço dos séculos XIX e XX, que certamente
analisaria nesta imagem, a hipótese projetiva da minha personalidade
hiperativa, com propensão para a desobediência. Não recordo, por ora,
qual o castigo que me foi aplicado pelo derrame da tinta permanente
– talvez o de ter que escrever horas a fio em cadernos de duas linhas,
pois desde essa época a minha caligrafia tornou-se irrepreensível. Não
obstante, nas aulas de árabe escrevo a lápis e asseguro que, até ao
momento, não houve quaisquer manchas desastrosas no caderno. Qualquer
dia arrisco a tinta permanente.
Bio| Vanessa Ribeiro Rodrigues é jornalista, escritora, documentarista, viajante. Nasceu no Porto, morou no Brasil e na Jordânia. O que lhe importa é reinventar a cor da linguagem, caçar histórias. É autora do livro “O Barulho do Tempo” e tem vários contos e poemas publicados em revistas literárias. Escreve segundo o novo acordo ortográfico.
1 comentário:
Uauuuu! Estás a aprender arábe... corajosa!
Beijos e Bom NAtal ;)
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