Podemos
avaliar, medir, ponderar, o progresso da nossa vida, a estagnação,
a latência de um estado intermédio, o retrocesso, ou o pêndulo
desse compasso através do humor de um prédio. Apercebo-me disso,
sobretudo, quando dou por mim, caminhante, a olhar para as casas
devolutas, o vazio do recheio imobiliário apenas com a carcaça da
fachada e a tinta estalada dos prédios antigos, imensos, burgueses;
um muito de história onde se escondem as ínfimas partículas da
memória, a invisibilidade das coisas que jamais serão ditas.
Constato porque tenho histórias, fragmentos da minha própria
lembrança alojados nesses prédios; resgato momentos, manhãs, fins de
tarde ou noites em que passei, exatamente, por eles e, nesse
instante, dá-se algo mágico, como se o filme da nossa própria vida
rebobinasse pensamentos. Esses prédios são, por isso, espécie de mnemónicas,
auxiliares de memória, recordando o que pensei num determinado
momento, um passado recente, por e.g.: numa fria e bonita manhã de
Inverno, com sol estendido. Ocorre-me tudo isto, no instante em que
volto a percorrer o Largo do Moinho de Vento, no Porto.
Há
dois anos, espreguiçada pela rua, nessa manhã de véu de invernia
leve e solarengo, fotografei pássaros por aqui, desejei ser dona do
conjunto de casas antigas (meio milhão de euros toda a área,
cheguei a perguntar) que tomam conta deste largo singelo, mágico,
para mim. Cheguei a comentar com o meu amigo P. que se encantara,
igualmente, por esta pequena praça, onde estão bancos de jardim,
num piso de cimento. Ele imaginava, no rés-do-chão desse prédio,
um café decorado com madeiras, onde se manteria o letreiro da loja
de tecidos que outrora ali funcionou. Doeu-me a alma, como se aquilo
fosse meu, quando resolveram cimentar todas as janelas e partiram os
vidros com esse letreiro. Na imaginação de P. haveria um piano ali
no largo, onde todos os fins de tarde, um mestre tocaria belas
melodias por uma hora, para nos mostrar lugares recônditos e
criativos dentro de nós, sensibilizando-nos com música. Cheiraria a café,
haveria copos de vinho, flores, livros, sofás, pouffs, cultura.
Haveria vida, vívidas histórias, reinvenções disparadas da boca, oriundas de novas
ideias.
Ocorre-me tudo isto, porque o lugar que comecei por ver como
meu, há uns anos, passando por ali, fotografando, avaliando,
medindo, ponderando continua, dois anos depois sem dono, repousado num abandono de aparente inutilidade, degradando, envelhecendo, com as
janelas e as frinchas cimentadas, como cartas lacradas, com pombos como inquilinos,
deixando a acidez dos excrementos lavar o que resta dos azulejos da
fachada. O tempo quase-estático deste prédio (ou conjunto de casas,
porque a da esquina é uma frutaria que ainda parece funcionar)
mostra-me, por comparação, o quanto vivi, o quanto avançou e
ficou, o quanto passou, o fôlego cheio que a vida me tem reservado,
nesta inevitável busca de imortalidade em tudo o que fazemos.
O
abandono da vida de um prédio é pois, espoleta para repensarmos no
movimento da nossa própria existência e constatação de que o que
nos distingue do inânime estado de um imóvel é
a capacidade de ação, de mudar o rumo do progresso de uma vida.
2 comentários:
Ola Vanessa! Ótima reflexão sobre a passagem do tempo e sua memoria. Na correria cotidiana esqueci de comentar que adorei "o Barulho do tempo".
se cuida
bjo
Querido Dárcio, me desculpa a demora na resposta, o comentário estava escondido no spam do meu e-mail, que reenvia para mim. Muito Muito Obrigada pelas suas palavras e por ter estado no lançamento do pequeno rebento. Muito Obrigada e espero em breve regressar ao Brasil. Beijo grande, Vanessa
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