segunda-feira, dezembro 23, 2013

2013/2014: Plano sequência


Quem acompanha este blog já deve ter entendido a relação que tenho com o tempo, ou melhor com a noção de tempo. Melhor explicado será dizer que tendo a crer, por experiência do vivido, que não há cortes temporais; que sim, podem existir realidades paralelas à nossa vida (e sem recurso a psicoativos) basta estarmos atentos; que há uma persistência da impermanência dos estados, da fugacidade dos momentos e da possibilidade de um eterno retorno. Como vai, pode voltar; há coisas que realmente passam para nunca mais serem, mas há essência de nós que continua a ser intemporal. 

Não obstante, tudo resumido o que se retém é que, apesar da ilusão do tempo que passa e de as velas crescerem no bolo de aniversário, de passarmos a dar mais valor à época da laranja, às estações do ano, se fará chuva ou sol no dia seguinte, não há ruturas temporais, mas sim uma continuidade da nossa construção diária. E esse sim, é o nosso verdadeiro tempo; ou melhor dito, do ritmo interior.

Recordo que desde há dois anos que as horas se apresentam de uma maneira peculiar para mim. Comecei a reparar, que não só tendia a adivinhar as horas, como adiantei os meus relógios 7 minutos (vá-se la saber a razão), e que sempre que olhava para eles, ou para qualquer outro, desde que não fosse em simultâneo, e eles apareciam em capicua, ou semi-capicua (se é que isso existe). Por exemplo: 10h10; 12h21; 23h23; 13h31; 11h11 e por aí vai. Os mais céticos falam-me das coincidências, os mais esotéricos de que está ajustado o meu ritmo biológico com o da terra. Posso dar ou mais valor a isto, dependendo das transformações que o meu ritmo tem tido nos últimos dois anos. Significativas mudanças.

Apesar das dificuldades pessoais, agudizadas por um cenário pesado e desestruturante de foro pessoal, alheio aos meus esforços e vontade, mas premente, e que impacta diretamente as minhas preocupações, o ano que se despede trouxe, além de maiores responsabilidades na bagagem, peso e leveza, lágrimas e sorrisos, vazio e sentidos, gigantes lições de vida. No meio dos estilhaços supera-se, contrariando, resgatando forças endógenas, onde elas pareciam falhar. Foi um ano de limite, muito difícil, mas de muitas conquistas pessoais. 

Fiz parte da equipa de um documentário sobre refugiados palestinianos na Jordânia, conheci Petra, o Wadi-Rum, viajei por vários territórios palestinianos, conheci gente incrível, terminei o Mestrado, publiquei um livro, regressei ao Brasil, comecei o Doutoramento, dei aulas do que mais gosto de fazer, comecei outro documentário, fiz parte da equipa fundadora de um novo Doutoramento a nascer em 2014, termino o ano com a expetativa de um novo projeto de viagens e outro desafio relacionado com as viagens. Dia-a-dia, pedra sobre pedra, contrariando a corrente, acreditando ainda que as adversidades e a superação de pagar as contas ao fim do mês seja um desafio constante. No fundo, voltei a aproximar-me de mim, do que me faz feliz, do que sou. E isso é o mais importante. É por isso que para mim, não há balanços de 2013, como deveria haver, porque este ano inaugurei aquilo que me parece um plano sequência. Não desejo nada para 2014 a não ser aquilo que já existe, em continuum. Será apenas a continuação da proximidade de mim.


sexta-feira, dezembro 06, 2013

A inamovível condição de ser prédio


Podemos avaliar, medir, ponderar, o progresso da nossa vida, a estagnação, a latência de um estado intermédio, o retrocesso, ou o pêndulo desse compasso através do humor de um prédio. Apercebo-me disso, sobretudo, quando dou por mim, caminhante, a olhar para as casas devolutas, o vazio do recheio imobiliário apenas com a carcaça da fachada e a tinta estalada dos prédios antigos, imensos, burgueses; um muito de história onde se escondem as ínfimas partículas da memória, a invisibilidade das coisas que jamais serão ditas. Constato porque tenho histórias, fragmentos da minha própria lembrança alojados nesses prédios; resgato momentos, manhãs, fins de tarde ou noites em que passei, exatamente, por eles e, nesse instante, dá-se algo mágico, como se o filme da nossa própria vida rebobinasse pensamentos. Esses prédios são, por isso, espécie de mnemónicas, auxiliares de memória, recordando o que pensei num determinado momento, um passado recente, por e.g.: numa fria e bonita manhã de Inverno, com sol estendido. Ocorre-me tudo isto, no instante em que volto a percorrer o Largo do Moinho de Vento, no Porto. 



Há dois anos, espreguiçada pela rua, nessa manhã de véu de invernia leve e solarengo, fotografei pássaros por aqui, desejei ser dona do conjunto de casas antigas (meio milhão de euros toda a área, cheguei a perguntar) que tomam conta deste largo singelo, mágico, para mim. Cheguei a comentar com o meu amigo P. que se encantara, igualmente, por esta pequena praça, onde estão bancos de jardim, num piso de cimento. Ele imaginava, no rés-do-chão desse prédio, um café decorado com madeiras, onde se manteria o letreiro da loja de tecidos que outrora ali funcionou. Doeu-me a alma, como se aquilo fosse meu, quando resolveram cimentar todas as janelas e partiram os vidros com esse letreiro. Na imaginação de P. haveria um piano ali no largo, onde todos os fins de tarde, um mestre tocaria belas melodias por uma hora, para nos mostrar lugares recônditos e criativos dentro de nós, sensibilizando-nos com música. Cheiraria a café, haveria copos de vinho, flores, livros, sofás, pouffs, cultura. Haveria vida, vívidas histórias, reinvenções disparadas da boca, oriundas de novas ideias. 

Ocorre-me tudo isto, porque o lugar que comecei por ver como meu, há uns anos, passando por ali, fotografando, avaliando, medindo, ponderando continua, dois anos depois sem dono, repousado num abandono de aparente inutilidade, degradando, envelhecendo, com as janelas e as frinchas cimentadas, como cartas lacradas, com pombos como inquilinos, deixando a acidez dos excrementos lavar o que resta dos azulejos da fachada. O tempo quase-estático deste prédio (ou conjunto de casas, porque a da esquina é uma frutaria que ainda parece funcionar) mostra-me, por comparação, o quanto vivi, o quanto avançou e ficou, o quanto passou, o fôlego cheio que a vida me tem reservado, nesta inevitável busca de imortalidade em tudo o que fazemos. 
O abandono da vida de um prédio é pois, espoleta para repensarmos no movimento da nossa própria existência e constatação de que o que nos distingue do inânime estado de um imóvel é a capacidade de ação, de mudar o rumo do progresso de uma vida.