Não tem hora, nem estação do ano ideal, e muito menos o propício momento se dá à noite ou durante o dia. Acontece. E só há uma forma de o evitar: não olhar nos olhos. É a porta. Se querem poupar-se não deixem que ele se cruze com o vosso campo de visão. Ele rouba vidas, porque não suporta a dele; já dessa não se salva, por isso usurpa. Não há lei, nem tribunal que preveja ou julgue tal crime. Submundo que é desconhecido. E, uma vez na nossa, não há forma de o expulsarmos até que saia e nos tenha tornado os dias num inferno. A mente vazia é recreio do diabo. E este recreio é a luta pela própria vida. E não haverá sangue, nem dor, ou gritos aflitos que os outros ouçam para socorrer. É um jogo de dentro, onde mais ninguém entra para poder saber do berro que a alma dá.
Hoje vi-o, reconheci-o. Olhava-me pelo reflexo do vidro, vigiando, como se anunciasse que era a dileta para a noite. Mas isso foi depois. Antes esperava como eu o último autocarro, no frio de um Porto de invernia atípica, de gelada brisa que penetra na derme, trespassa a camada óssea e nos arrepia. Lançou-me o olhar cirúrgico de quem faz um primeiro diagnóstico. O ardor de incómodo desconforto acometeu-me. Percebi. Entrei e, lá ao fundo, no rasto do autocarro, sentei-me de costas para a marcha. Ele acomodou-se no último lugar, de frente para mim, para poder mirar-me. Virei o rosto para o telefone, fingindo concentração. Ignorei o atento olhar, penetrante e incómodo de sabermos que estamos a ser observados no detalhe médico, como microscópio de última ponta em busca do comportamento das células.
Ocorreu-me nesse instante que, na semana anterior, uma mulher me tinha lançado mesmo olhar, guloso e dessa lânguida sensaboria ansiosa de degustar a vida dos outros para a roubar. Queria, atesto, surripiar a minha, porque, num primeiro instante, poderia parecer-lhe melhor do que o cabelo oleoso que deixava escorrer pela cabeça, uma réstia de cor loira, que entretanto se tranformara num cobre azedo, como as putas em fim de carreira quando deixam o verniz estalar, aos bocados.
O meu ladrão de hoje é ruivo e pude ver-lhe um sorriso de triunfo como quem dá como certa a vitória sobre a presa na peleja predadora. Não cedi. Pude ver pelo reflexo do vidro do autocarro que magnetizara os olhos em mim. Uma obsessão doentia. Aquele sorriso maligno. A marcha. O reflexo. Fingi nova atenção sobre o telemóvel, enquanto a cabeça processava dezenas de planos para escapar ao roubo de vida. Houve silêncio. Ele mudou de lugar. Como fingisse não perceber, mas abonada de periférica visão, controlei o meu predador, nos limites ópticos.
O som de motor de autocarro. Pára- arranca. Portas abrem, fecham. Sinal de paragem. Sonora voz feminina indicando as estações. O vidro, o reflexo, as estratégias da minha cabeça para a evasão. Raciocínio militar: e se simulasse sair agora, seguir-me-ia? Se fingisse sair, talvez ele saísse antes e livrar-me-ia de um roubo anunciado, de vida.
“Próxima paragem, Recarei”
Apercebi-me de que era agora. Iria roubar-me a vida. Entrar nela e seguir comigo para casa, fingindo ser eu, mas sendo ele. Não olhei. O reflexo de novo como salvaguarda. Deteve-se do meu lado. Achei que iria obrigar-me a olhá-lo. Um toque espontâneo bastaria para que me distraísse e em reação olhasse o dono da mão que me tocaria. Segundos que pareciam eternidade. Paragem. Ele sai antes de mim.
Posso jurar que vi o reluzente vermelho de dois olhos pequenos a brilhar no reflexo do vidro. Parece que hoje o diabo não teve recreio.
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