segunda-feira, janeiro 30, 2012

Manhãs submersas

Não me lembro de ter alguma vez sentido o bafejo de uma noite branca no Porto. Quando galopava a adolescência, ou mesmo com a juventude ensaiando o prelúdio da vida pelos poros, eu não tinha autorização para sair até altas horas, logo, muito menos dormir fora do poleiro. E as noites da Queima das Fitas não interessam a ninguém, tendo em conta, aliás, que nada me lembro da única noite em que saí, no rescaldo do término de uma relação de seis anos. 

De certa forma, não ter acontecido uma aurora ao meu olhar na cidade é, isso sim,  penso-o, uma blasfémia, uma grave falha, se tivermos em conta que essas são já incontáveis suplementos da minha memória pela passagem na cidade tropical que nunca dorme, onde vivi quase o tempo em que cresci, praticamente, a descobrir a vida com o meu primeiro namorado, em tenra idade.

Quis o acaso que, recentemente, tivesse uma certa amostra semanal de como as manhãs despertam no inverno, ao atravessarmos a ponte do Infante, librando pelo Douro, às 7.20 a.m., anunciando pois os humores que hão-de vir do dia que se espreguiça, as lágrimas que poderão brotar, a indelicadeza que poderá porvir de irascíveis nublosas, ou por outro lado, o viço ternurento que poderá dela transpirar, como quem salta da cama pujante, depois de um abraço de amor, ou íntimo enroscar de corpos, esbanjando sorrisos e partículas tão luzidias, quanto a suavidade de um sincero e generoso beijo.

Os sábados ao alvorecer têm cores que o technicolor ou a pigmentação não conseguem reproduzir fielmente. Se a máquina cerebral pudesse revelar, ato contínuo, em célere instantaneidade, a imagem do que realmente vemos, teríamos, acredito, um sem número de reproduções a desafiar a temperatura de cor da nossa própria biologia. 

Posso dizer, por isso, que ando a colecionar manhãs submersas, aos sábados. E, a avaliar pelos parcos e distraídos companheiros de autocarro pelo sono ou preguiça, posso orgulhosa e exclusivamente reivindicar para mim a proeza de o fazer. Ver as gradações de laranja-fuchsia, abraçado pelo rendilhado das casas pontiagudas, ainda somo sombras pinceladas, como arquétipos, que povoam as margens do Douro, no horizonte plácido, dormente, a tornarem-se num viçoso azul-elétrico, é privilégio de começo de dia. 

Esta última semana, por exemplo, posso jurar que as cores dançavam no horizonte em rosas fugidios, vermelhos relampejantes, numa sintonia tão além da minha conceção de cores e tonalidades que quase posso arriscar dizer que a natureza, e seus secretos humores e seres, tem especial sabedoria nas formas de viver, escondendo os seus melhores momentos, esses íntimos, para quem os souber degustar, por acaso, ou sincronia inexorável que só a sensibilidade dá. Por exemplo, se atentarmos com muita atenção e respeito, podemos mesmo ouvir o respirar de uma manhã. 

quinta-feira, janeiro 26, 2012

Hilda, a fofa blasé

Há quem já lhe tenha pedido workshops, se candidate para ser aluna para toda a vida, seguidora, fã incondicional, ou ainda mesmo a tenha convidado a escrever um livro sobre essa arte de ser, assim, uma fofa blasé. E ser fofa blasé é todo um mundo fisiológico, porque, dirá ela, isto não se aprende, ou ensina, nem será coisa dignificante de um manual de instruções, ou sequer guia rápido de consulta na carteira, porque, em rigor, ela percebeu que isso, existindo, só pode ser modo de estar, ser, haver e por aí fora, quanta geografia por galgar em todos os verbos auxiliares, exercitando, com arte e manha temperada, ora doce, ora acre, só um pouquinho. Porém, sê-lo assim, percebemo-lo em Hilda, pode ter, de fato, um amargo maior.

Hilda é essa fofa blasé. 

Uma espécie de diplomacia nos afetos, ora dá, seduz, ora, de repente, não se compromete com nada, nem ninguém, como que deixando, isso, um leve perfume no ar que eles hão-de sentir e querer agarrar, tal qual o último fôlego, a última réstia de esperança, como a bruxuleante luz de vela, quase a esmaecer, mas ainda não se indo, rodopiando no etéreo momento que resta, dando o seu melhor brilho.

E a ser verdade, que ela, Hilda, a nossa Hilda, seja uma fofa blasé, conforme lhe chamou B. - enternecedora e fiel a amiga, de banhos de mar, sol de Ipanema, e corpo dourado no Leblon, e ainda chope e samba na Lapa a altas horas, antes do nascer do dia para o café da manhã - ela terá razões para melhor perceber porque assim não o é, quando submetida ao mais genuíno e traiçoeiro dos afetos. 

Em vez de usar o blasé, cogitou, como antídoto para esse certo veneno, destilado em doses acima do suportável no início, e depois quase como último fôlego de vela, num vazio eco do vidro da poção, ela passa a ser, pois, a fofa incondicional. E, sabemos, sê-lo, nunca trouxe coisa boa. 

Porque toda a lógica do que ela nos disse, perde fundamento: "os caras ligam e você não dá bola; o cara convida e você diz que naquele dia não dá, ou que pode ser", desvalorizando, "que está ocupada, que está trabalhando, que é melhor deixar para outro dia, que não atende, que depois, se rolar, vocês se encontram e tal". É que aí percebemos como funciona a natureza da mente: quanto mais você dá para trás, e nem se fazendo de difícil, apenas porque você nem está a fim,  mais eles ficam circundando a área, como feras amansadas. Por isso, a gente sempre falou "Hilda e os seus homens", quase ansiando encontrar com ela para saber uma história nova. 

Ela tinha sempre uma história nova. 

Nos últimos tempos, todavia, ela meio que se reformou, inconscientemente, porque passou a ser a fofa incondicional, em prol, vá lá, de pelo menos dois deles. E ter dois homens, Hilda a dois, não é, convenhamos, nada normal. É, por isso, anda "meio dividida", me confidenciou. Mas dividida, porque, no final das contas, nenhum deles é exatamente aquilo que ela precisa, como complemento de vida, assim, parceiros, cúmplices do óbvio. 
Anda tudo errado, a gente falou para ela. Ela meio que anuiu, mas não se deixou convencer. Lembrou até dessa história da idade e assim. Eu juro que nunca ouvi a Hilda falar da idade, nem dessas filosofias de auto-ajuda e blá, o tempo que passa, os núcleos fortes como fases de vida. (Hilda, relaxa e goza!, vai!)

Ela anda com um discurso meio estranho. Houve até um momento que ela lembrou um cara que no segundo encontro de ida ao cinema - puro encontro de amigos- ela ficou meio assustada, percebendo o efeito que poderia ter o fofa blasé: o cara virou para ela, um cara estabelecido, seus 42 anos, filha de 14 anos, meio feiinho, mas super interessante, amigão: "-Tá na hora de você se estabelecer, casar, quem sabe ter filhos. Tem que procurar companheiro. Você não gostaria de ter filhos? Quero dizer para você que estou disponível". 
A Hilda saiu correndo do carro, nem deu xau e nunca mais falou com o cara. É como se a distribuição dos afetos estivesse mesmo desequilibrada. Nessa hora, lembro bem, B. falou: - Puxa, Hilda, quem dera que isso acontecesse comigo! 
Eu falei para elas que era melhor acabar com esse negócio de fofa blasé,  pois a conversa estava a ficar séria demais, e aos 25, ainda não é tempo de ter conversas sérias, quando tem um sol chamando na rua. 

segunda-feira, janeiro 23, 2012

bater à máquina

Também um dia, nesta relíquia escrevi (sinais de que os cabelos brancos têm já fundamento), herdada do meu avó, passada para o meu pai. Era um papel amarelo, muito fino, com pequenas letras dançantes, marteladas, negras e vermelhas, que saíam do cartuxo, - onde eu sujava sempre as mãos traquinas - filadas num tecido rubi-negro, estirado, e ondulante à ordem das teclas (hoje algumas mancas, outras reformadas), que os meus dedos imprimiam, duras. 
Clac, Zip, Plim, chegou ao fim, papel, mudar parágrafo, avançar na página abaixo, puxá-la; fazer cinema, cartas comerciais, de amor, burocracias, contas, ofícios e prosas várias; ver a cartesiana prosa tão escorreita num manto de papiro moderno, tão terno e acetinado. Foram poemas aquilo que escrevi. 
Poemas aos dez anos de quem acha que já sabe tudo sobre a vida e tem certezas, até que, tal qual uma máquina de escrever, tudo fica atrás, nesse tempo onde o tac-tac agitado, laboral de ponto picado, qual fabril obrigação, se empoeira, à espera de um dia como estes, alguém se lembre de as tirar do esquecimento, e beba com elas da liquefeita luz deste sol, a lembrar como velhos comparsas, camaradas de luta e árduas jornadas, em que outrora o futuro foram elas. Eis a Messa cá de casa. Habita o quarto, por agora, ao lado do Philips onde a minha bisavó ouvia a radionovela e a novena ao fim do dia. 


segunda-feira, janeiro 16, 2012

A essência do tempo 
é o caminho dentro de nós