A rua. Esqueço-me que a rua é uma overdose de histórias, gente e possibilidades de histórias. Há os cheiros. Os nauseabundos. Azedos. E aqueles que não conseguimos qualificar por nos faltar olfacto eficiente que ouse ir mais além do aceitável. Um cheiro dentro de uma galeria de esgoto há-de ser uma hipérbole do nauseabundo, além da nossa capacidade de o qualificar. Depois, há o barulho infernal que me formiga os tímpanos à indiferença de buzinas, vozes, tantas vozes, e me engrena na elipse labiríntica da urbe. Pode ser o princípio activo da letargia, antes da indiferença.
Devo ter recolhido uma dezena de histórias enquanto cruzava a Avenida Rio Branco, antes de passar pela Avenida São João. Da janela do ônibus (ou autocarro, ou transporte coletivo para omnibus: "todos" em latim) essa vitrine, vê-se o filme, o plano sequência, o cinema em directo da vida a acontecer. É uma possibilidade. Um anti-depressivo eficaz: há-de ser, de tão divertido, mas nunca me lembrei de tamanha empreitada nesses dias mensais de TPM.
Paguei $ 2,70 para ver a vida a acontecer, sem que tivesse escolhido o itinerário. O 669-A, Terminal Santo Amaro, entraria na Consolação pelo corredor de ônibus. Dar-me-ia o personagem principal deste filme, pois preguiçosa em anotar todas as possibilidades de histórias, acabei por me esquecer de todas elas.
Ele era um homem que rasgava papéis e sorria ao voar. Simples, assim. Cabelo ralo, magricela, orelhas salientes na cabeça pequena. Sujo, dos pés à cabeça. Farrusco. Calças a dar-lhe pelo tornozelo, muito enrodilhadas na cintura, com um cordão a segurar o ímpeto do deslize fácil delas pela cintura abaixo. A minha avó tinha uma palavra engraçada para qualificar este estilo andarilho: mijona. Sim, era uma espécie de calças à mijona. Muito puxadas para cima, enrugadas, muito apertadas.
Levava um daqueles sacos plásticos no braço e, parado na berma da estrada, no limite do passeio e a vala de esgoto, enquanto os carros aceleravam na Consolação ele sorria. Pôs o pedaço de papel da revista, um quadrado quase perfeito, que cortava as caras das celebridades, ou os números da lotaria, ou os classificados a cores do jornal. Não dava para definir bem de que papel se tratava. Apenas que era colorido.
Ele rasgava com uma estratégia: fazia pequenas investidas como se o papel tivesse linguetas, e em fila, ia rasgando, rasgando, rasgando. Rasgava com prazer. Um prazer que não terá durado mais do que cinco segundos. Rasgava e via os papéis voarem, em linguetas, pela corrente de ar que os carros faziam ao passar. Ele rasgava e sorria. Rasgava e sorria. Até que o papel final deu uma chicoteada no ar. Voou diferente. Arrancando-lhe um sorriso diferente. Mais gracioso e terno. Sorriu a encolher os ombros, despreocupado com o que os que passavam pudessem pensar. Não lhes ligava peva. Ensaiou uma dança com os ombros e sorria, enquanto os papéis ainda serpenteavam à deriva coloridos no ar. Pelo rosto alheio e fundido naquele movimento de tempo suspenso, ele há-de ter voado também com aquela lingueta final.
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