terça-feira, setembro 28, 2010
segunda-feira, setembro 27, 2010
"O tempo, medida do movimento"
"Queres que eu aprove a quem diz que o tempo é o movimento de um corpo? Não, não aprovo. Sei que não há corpo que não se mova no tempo: tu mesmo o afirmas. Mas não acredito que o movimento de um corpo seja o tempo; isso nunca ouvi, e nem tu o dizes.
Quando um corpo se move, sirvo-me do tempo para medir a duração de seu movimento do começo ao fim. Se não vejo o começo, e percebo seu movimento sem ver seu fim, só posso medi-lo do momento em que observo o corpo mover-se até o momento em que já não o vejo.
Se o vejo por muito tempo, apenas posso afirmar que a duração de seu movimento é longa, mas não posso dizer quanto é longa, porque só determinamos o valor de uma duração comparando-a. Dizemos, por exemplo: “isso durou tanto quanto aquilo, ou essa duração é o dobro daquela”, semelhantes. Se podemos notar o ponto do espaço onde se inicia um movimento, e o ponto de chegada, ou suas partes, seele se movesse em círculo, poderíamos dizer quanto tempo levou para ir de um ponto a outro o movimento do corpo ou dessas partes.
Assim, o movimento de um corpo é diferente da medida de sua duração; que não vê, pois, a qual dessas coisas se deve chamar de tempo? Se um corpo se move de forma irregular, e outras vezes se detém, ora, é o tempo que nos permite medir, não apenas seu movimento, mas também seu repouso, e afirmar: “Ficou em repouso por tanto tempo quanto em movimento – ou qualquer outro intervalo que tenhamos calculado ou estimado aproximadamente”. O tempo não é pois a mesma coisa que o movimento."
"Confissões", Santo Agostinho
Poema que aconteceu - Carlos Drummond de Andrade
"Nenhum desejo neste domingo
nenhum problema nesta vida
o mundo parou de repente
os homens ficaram calados
domingo sem fim nem começo.
o mundo parou de repente
os homens ficaram calados
domingo sem fim nem começo.
A mão que escreve este poema
não sabe o que está escrevendo
mas é possível que se soubesse
nem ligasse."
não sabe o que está escrevendo
mas é possível que se soubesse
nem ligasse."
Carlos Drummond de Andrade (Itabira do Mato Dentro, Minas Gerais, 31 de outubro de 1902 - Rio de Janeiro, 17 de agosto de 1987) - Considerado um dos maiores poetas brasileiros, autor de uma vasta obra poética, que também inclui contos e crônicas. Morou no Rio de Janeiro a maior parte de sua vida, onde, foi funcionário público. Foi traduzidos para vários idiomas e é uma referência na poesia brasileira. Nesta semana, poemas do seu primeiro livro Alguma Poesia - 80 anos da sua primeira publicação.
sábado, setembro 25, 2010
mais um anexo do cérebro
A Revista Literária "The Paris Review" disponibiliza arquivo de entrevistas com escritores, dos últimos 50 anos...
terça-feira, setembro 21, 2010
sexta-feira, setembro 17, 2010
inquilino
Somos inquilinos de nós e, às vezes, pagamos um aluguer demasiado alto pelo uso deste corpo.
terça-feira, setembro 07, 2010
Para que serve o horário eleitoral: os tais (medíocres) 15m de fama
A mulher do padre fala por ele. “Política abençoada, começa em casa. Por isso eu, Mara Maravilha, conto com o seu voto para o meu esposo servo de deus”. Diz que o marido, puro evangélico, não bebe, não fuma, é um bom homem. Ele não fala, sorri, só sorri, e mais não se diz, para manter a compostura, embora, lá no fundo, já se a tenha perdido. Afinal, por trás de um grande homem, sabemos, está uma grande mulher. E por detrás de uma grande mulher, quanto mais não seja a avaliar pelo tamanho do silicone peitoral da miúda pode, também, estar uma pêra. Isso mesmo, leram bem: uma pêra. (E não nos estamos a referir ao formato da mama: isto é sério, muito sério). “Sou a mulher Pêra. 1911 para deputada Federal”. Outra colheita.
E como a política precisa de fruta, de muita fruta, já não bastavam os “laranjas” da corrupção no senado (perguntem ao Renan Calheiros do PMDB), a Pêra, convenhamos, pode ser um bom partido, até porque, é a produção frutífera com menos expressão no Brasil. Precisa ser incentivada, portanto. Só que em matéria de fruta a coisa engrandece, fica mais dura e chega a ter pevides: a "Mulher Melão" é candidata a deputada estadual no Rio de Janeiro. O silicone foi generoso. O programa eleitoral nem por isso: se ele existisse. Há ainda a Mulher Melancia, mas era fruta a mais. Não se candidatou.
Menos doce e sexy, Luciana Costa parece um bulldog a rosnar palavras, enraivecida : “combato drogas e pe-dó-fi-li-a, Paz na Família e quem me ensinou foi o Éneas; Deputada Federal, 2252”. Acho que aqui levamos um susto, dos grandes, não percebemos se com toda esta agressividade ela nos quer dar um raspanete (onde raio está o comando da TV para mudarmos de canal?). E o Éneias, meus caros, é um senhor de barba displicente (juízo meu), com óculos fundo de garrafa, que abana o "corpixo" para a esquerda-e-para-a-direita sempre que repete o número eleitoral seguido de um objectivo: “1956 é trabalho”, e por aí vai. Mas o melhor da paródia (e olhem que isto é muito a sério) é o “Tiririca, pior que tá não fica”. A coisa aqui fica preta, ou melhor amarela, pois o sorriso inicial que se esboça ao ver aquele homem (?) vestido de palhaço (se não é, parece: outro juízo meu) a repetir um-pior-que-tá-não-fica é matizado com as nuances da gema de ovo.
A coisa piora aqui, enquanto abana o cabelito loiro: “Sou candidato a deputado federal. E o que faz um deputador federal? Na realidade, eu não sei. Mas vote em mim que eu te conto”. Não sabemos bem, se é caso para rir, ou chorar. Talvez seja o caso para ele se aconselhar com Ronaldo Esper que quer “agulhar os políticos para mudar Brasília” Vamos lá: "rewind" no vídeo. Enquanto ele diz “a-gu-lhar" levanta as mãozinhas em forma de garra como se fizesse um show de dragqueen. (Falta o “rowwww! Ficaríamos mais felizes com o rowwww felino")” E não percebemos muito bem onde ele quer chegar com aqueles óculos de sol de armação bordô e um duvidoso fato castanho, ornado com uma não menos dúbia gravata-puída. Será ele fã do Crepúsculo? Os vampiros também anda aqui?
Andam, sempre andam de outra forma. Numa forma mais Zeca Afonso. E a política brasileira também é isto: as figuras da comédia (amadora) que falam muito a sério, enquanto usam o horário nobre para brincar ao sem-noção. Gozar com a nossa cara. Se isto é democracia, percebemos: é um perverso sistema que permite que gozem com a minha inteligência. E eu nem vou votar. No fundo, esta velada falência democrática, é-o o ano todo, de outra forma, com mais retórica e gente mais bem vestida.
Há umas semanas, o Estadão trazia a seguinte banda-desenhada: um casal em pé, especado em frente à TV: lia-se as palavras de um político que prometia roubar, lixar-lhes a vida, aumentar a corrupção e os impostos. A lista era mais completa. No final, o casal vai embora e diz: “Vou votar nele, ao menos ele não mente.”
Há umas semanas, o Estadão trazia a seguinte banda-desenhada: um casal em pé, especado em frente à TV: lia-se as palavras de um político que prometia roubar, lixar-lhes a vida, aumentar a corrupção e os impostos. A lista era mais completa. No final, o casal vai embora e diz: “Vou votar nele, ao menos ele não mente.”
sábado, setembro 04, 2010
sexta-feira, setembro 03, 2010
quinta-feira, setembro 02, 2010
A culpa é do gatinho, da banana e outras (nada) importantes banalidades Será que a poesia é Literatura, mesmo?
A alquimia é uma coisa complicada, pessoal, intransmissível, mas serve para explicar muita coisa. Ou nada. Porque o nada tem sempre uma boa dose de tudo, que se dissipa por aqui como vento, ar, podendo o ar gasoso, que por vezes exala, paira e não se vê, sufocar. E se a alquimia é pessoal serve para o espanto, a indignação, a transformação das emoções em sentimento e para suportarmos melhor a vida.
Há emoções que de tão pessoais são um todo colectivo: todos sentimos o mesmo, em diferentes cadências e intensidades, com maior ou menor peso, mais ou menos moderado, mais ou menos importância, mais ou menos reflexão. Choramos, berramos, esperneamos, sufocamos, atiramo-nos ao chão, achamo-nos feios e incapazes, inferiores, desgastados, lentos, nadas, pequenos nadas. O sentimento é o mesmo. A intensidade é que oscila.
A noção de nós aqui-e-agora. Ele vai por esse caminho, sem atalhos, mas nunca anda por lá.
Ferreira Gullar. Lançou, ontem, na Livaria da Travessa do Leblon, no Rio de Janeiro, “Em Alguma Parte Alguma”. Não publicava há onze anos. “A poesia não tem lugar no mercado”. Foi “Abduzido”. “busco/tateando/no escuro/o interruptor da lâmpada de cabeceira/e/ao acendê-la/deparo-me/comigo/em frente a mim/como se fosse um outro:/estarei noutro?/(e de pijama/o mesmo pijama verde-grama/com que durmo/em minha cama)/e/apa/go/a/luz/na treva/cismo/que/esse eu-mesmo-outro/habita/agora/abduzido/um abismo/(bem rente à cama/do quarto de um hotel/na capital paulista”.
A alquimia dele é a poesia. “Ajuda as pessoas; dá uma alegria às coisas”. E as coisas é isto. As coisas é a divisão da casa do nosso encantamento. É-o. Não são. Porque as coisas são singular e o plural das coisas só serve para equívoco. Pode ser isto. Bem que podia ser isto. E agora começamos a entrar no mistério da vida. É pessoal o que lhe vai lá dentro, mas podemos tirar lições – com sorte, uma receita biológica. Com sorte, embora o azar paire neste texto. Mas se azar for a descrição de sorte e sorte a descrição de azar no nosso mundo pessoal, está tudo bem. Fica sempre tudo bem.
O homem, o poeta, a intermitência poética de quem aqui se fala não tem receitas. E, embora, as coisas que lhe ocupam a cabeça sejam universais, não há coisa mais pessoal do que a anarquia dele – tão nossa e lugar-comum. “Quando a indagação surge é como se começasse a pensar pela primeira vez e isso é mais importante do que qualquer coisa que eu escreva”. O mais importante. Nunca sabemos o que é mais importante, porque a hierarquia das coisas não existe. É singular, lembram? Claro. “Será que a poesia é literatura mesmo, ou é outra coisa?”
Talvez outra coisa. Talvez poesia. Talvez Literatura. Talvez apenas palavras e alquimia. “Ela é tão Minerva. É assistémica. É uma outra coisa.” Mas qual foi a pergunta, mesmo? A Literatura é poesia? Não: a Poesia é Literatura? “O Poeta resiste a ser adulto e isso é verdade. A criança desobedece e não vê o mundo com métodos”. Voltamos a ser criança com a Poesia. As bananas apodrecidas, o gatinho, os dragões, as aranhas na pia – mas já lá voltamos. Bananas apodrecidas. Que coisa tão banal! Que coisa tão Gullar!
A vida correndo, o universo explodindo, as estrelas brilhando, enquanto as bananas apodrecem. Banana 3, Banana 4, Banana 5. Os poemas. As bananas. “O mundo está no sistema solar e as bananas estão lá” . Como se algo ali permanecesse vivo no exacto apodrecimento. “O Universo nasceu, houve um princípio, ma antes dele havia o nada e não pode haver o nada – não pode haver o nada. Não consigo conceber que não exista nada. Big Bang? Tenho horror ao universo porque é grande demais. Com ele, a gente vira nada de nada”. Só vale pelo seu espantoso vão silêncio. “Não quero saber do universo, quero saber de gente”. Do seu ambiente íntimo, de quanto dura o seu gatinho, e de quantas bananas vão apodrecer ainda nas páginas de seus livros. “O poema é uma invenção do lugar que não pode ser dito. Na hora de escrever, eu reduzo o grau de probabilidade do que há em mim”.
Química interna. Começa a palavra condicionada, que vem. “O resto é uma mistura. A vida é feita de acasos. E o poema é uma mistura de acaso com necessidade”. Necessidades, acasos de alguma parte alguma, de algum Gullar Nenhum, de Gullar de alguma parte. “Eu vivo numa cidade de 30 amigos meus, Não conheço a maioria das pessoas” E não importa. “Ferreira Gullar, famoso eu não sei quem é”. Ouviriamos do mendigo. Depois vem o Amor. A alquimia da Poesia. Parte vertida de Amor. “Como de Machado de Assis para Carolina, que estava morta.” E o que é a poesia hoje (se é que foi alguma coisa algum dia)? “Eu não sei responder”.
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em alguma parte alguma,
ferreira gullar
O romance como recriação do tempo e da memória
Na máquina de escrever do Luciano Trigo a entrevista com a escritora brasileira Christiane Tassis, em slow motion... E olhem que isto é o Melhor do Inferno
O inquilino II
Não devia continuar com isto. Estou a tentar amarrar os dedos, mas eles ganharam vida própria. E quando os nossos membros ganham vida própria a rotação voluntária pode ser mais longa e libertadora do que imaginamos. Não estou certo de que deva fazê-lo. Os dedos armadilham-se nas teclas e vertem neste écran branco de nada a quase-metade do pensamento que entrou em combustão na máquina cerebral.
A máquina cerebral. É isso. Quase-metade: isto de acharmos que a linguagem traduz fac simile aquilo que pensamos é uma grande e retumbante gargalhada. Nada: não traduz absolutamente nada. Apenas roça uma probabilidade aproximada do algo de parte que se passa nesta maquineta impregnada de defeitos de fabrico, à nascença, com tendência certa de piorar com o tic-tac do tempo externo. Sobretudo exposto ao tempo externo. O suor também ajuda. Vai degradando com as bofetadas sociais, as hipocrisias, o desgaste natural da falta de amizades verdadeiras, da falta de amor, até faltar o sexo higiénico. Pelo menos, o higiénico. Descartável. Pode faltar o sexo higiénico.
A vizinha debaixo nem deve saber o que é isso. Eu soube-o muito tempo. Até à abstinência viril. Temos sempre de dizer que é abstinência viril quando já não nos querem. O resto vocês sabem. Ao resgate voluntário para este compósito asséptico das divisões. Descartável. É. Até as putas me começarem a rejeitar no asco sólido que pode ser a decisão alheia. Como dependemos do asco sólido da decisão dos outros. Depois, as erosões internas: como nos fazemos mal, porra! É, quando pomos tudo a girar, esta máquina entra em elipse. Trata-se de uma mecânica e química alquimia que gorgulha, engrena, circula, gira, amortece e enferruja.
Como pode enferrujar!: até o óleo biológico deixar de ser suficiente para nos valer na hora de friccionar os freios necessários para o derradeiro crash. Mas bem sei que devia parar, agora, mesmo de escrever. Vou parar. Eu vou parar. Continuar pode sempre parecer forçado. E quando forçamos o mecanismo de nós, já estamos a trair o veio escorreito da vida, que é o mesmo que dormir com várias amantes ao mesmo tempo, ansiar, asfixiar o peito, multiplicando fingimentos. Multiplicamos sempre fingimentos por solidariedade. Elas sabem que minto. Fingem acreditar, mas tudo fica bem. É agora, preciso de parar. Há isto que não me deixa: eu preciso de testemunhas. É por isso, que os dedos vão, quem manda é a maquineta cinzenta.
O processo é simples: há o espanto. A indignação. A inquietude. Tudo começa com a inquietude. O peito aperta, prende, como se o agarrassem a seco e fosse espremendo um pano lá dentro, devagarinho. Passa para o corpo: ah, e vai formigar! Comunica com a máquina cerebral: o curco-circuito disfuncional já começou, há a ebulição, a tempestade, a explosão, a corda rompe: clash: haverá sempre relâmpagos internos e as lâmpadas fundem sempre. Temos muitas lâmpadas aqui dentro de nós que fundem todos os dias: além dos fusíveis! Convém que as tenhamos em doses suplentes. Alta voltagem.
Haverá sempre alta voltagem e um flash pequeno, transmitido para as ligações internas até às pontas dos dedos. Eles excitam-se. Convencem a mão a saltitar pelas teclas. Sabem as letras precisas que têm de premir para formar uma frase, texturizar o conteúdo certo, na língua certa e não noutra. Por que raio não é noutra? E são as pontas dos dedos que mandam, sabiam? As pontas dos dedos. São mais donos do nosso mundo: porque mais responsáveis de fazerem o caminho inverso à máquina cerebral. E isto é tudo em câmara lenta, entendam. Esperem. Acho que alguém bateu à porta. Tchekov a esta hora? Tchekov terá acordado de novo de madrugada. Mas Tchekov foi-se há muito. Só a mãe dele toma agora conta daquele apartamento soturno e cinzento. Não gosto de gente cinzenta. E há tanta gente a espalhar cinzentismo por aqui. Carregam uma nuvem pesada a ameaçar chover só para chamar a atenção.
Sempre me afastei de gente assim. Bajuladores. Depressivos. Inseguros! Detesto gente depressiva. Só a mãe de Tchekov era assim. Ele era branco-puro. O cinzentismo deixava para a poesia, que a propósito era uma porcaria. Só se satisfazia depois de várias vodkas puras. No final, tornou-as frequentes ao dia, porque não conhecia mais outra forma de enfrentar a vida sem o entorpecimento dos sentidos pelo álcool. “Não consigo ficar sóbrio o tempo suficiente para achar graça em ficar sóbrio”, citava F. Scott Fitzgerald.
O fígado não aguentou. Tchekov ficou carcomido. Era dono de um sebo na Rua Augusta ao lado do neón das putas. Não existe mais Tchekov, nem o sebo, nem o poeta. A arte do carcomimento (não me importa que a palavra não venha no dicionário é esta a quase-justa que me traduz o que lhe aconteceu) levou-o cedo. A vodka deu um empurrão. Os néons ainda lá estão. As putas também. Acho que bateram de novo à porta. Ouve-se um eu não sabia. Três pancadas na porta. Ouve-se um leva-me, depois um vens cá fora, seguido de um queres que arrombe a porta. Ouve-se um não me podes deixar assim. Não me podes deixar nunca. Ouve-se um sua puta tu dependes de mim e nunca mais ninguém te vai querer!
O baque estremecedor dos pontapés na porta. Há um, dois, três. Há mais. Há a voz. É aqui? É a voz azeda e rouca de um homem que deve ter gritado toda a vida. As cordas vocais agora traem-no em vingança necessária, atroz, senil. É a voz do vizinho de cima. O vizinho dos cacos de vidro da cerveja. As pancadas são secas. Ou sou eu que estou sensível. Não poderia nunca ser nesta porta. Não é na minha porta, claro. Não depois que Tchekov se foi.
Os russos sempre lidaram melhor com a solidão. Há a vodka e o Dmitri Dmitriyevich Shostakovich ( Дмитрий Дмитриевич Шостакович). Sinfonia N. 7 “Leningrado”. Obrigou-me a ouvi-la dezenas de vezes. E dizia-me olha como a vida acalma agora: são as armas depostas. Olha como se torna violenta agora, a revolução vai avante. Olha como se escondem como ratos, olha como se vergam, olha como se traem, olha como se vendem, olha como a essência humana....
Era quando lhe dizia sempre para parar. Não aguentava aquilo. Nunca podia aguentar aquilo tudo até ao fim. Obrigava-me a ouvir a música vinda da casa dela, à tarde, quando o prédio estava vazio. Punha a música alta e interfonava-me. Ouves? Ouves? Quando não me apetecia não lhe atendia, mas ele punha a música na mesma. Era uma espécie de terapia obssessiva-compulsiva. Eu ficava desesperado. Só que a gente habitua-s a tudo, menos aos outros. E a melhor forma de ganhares uma guerra é cederes. Eu não podia sair de casa. Era o meu Inferno Particular.
quarta-feira, setembro 01, 2010
Perplexidades, Gullar
Do novo livro de Ferreira Gullar, prémio Camões, Alguma Parte Alguma, lançado hoje no Rio de Janeiro...
Perplexidades
a parte mais efêmera
de mim
é esta consciência de que existo
e todo o existir consiste nisto
é estranho!
e mais estranho
ainda
me é sabê-lo
e saber
que esta consciência dura menos
que um fio de meu cabelo
e mais estranho ainda
que sabê-lo
é que
enquanto dura me é dado
o infinito universo constelado
de quatrilhões e quatrilhões de estrelas
sendo que umas poucas delas
posso vê-las
fulgindo no presente do passado
Perplexidades
a parte mais efêmera
de mim
é esta consciência de que existo
e todo o existir consiste nisto
é estranho!
e mais estranho
ainda
me é sabê-lo
e saber
que esta consciência dura menos
que um fio de meu cabelo
e mais estranho ainda
que sabê-lo
é que
enquanto dura me é dado
o infinito universo constelado
de quatrilhões e quatrilhões de estrelas
sendo que umas poucas delas
posso vê-las
fulgindo no presente do passado
Revista Minotauro
Revista Minotauro lançada a semana passada no Rio de Janeiro. Para quem andava faminto de boa prosa sobre arte e literatura... É, tem sotaque carioca...
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