A noite até começou molhada… Escorregadia. Mas longe de imaginar o que aconteceria depois. O deslize, esse. Ela dizia que era chuva oblíqua. Lembrei-me de Pessoa, o Fernando, que a descreve como rasgos desesperados da alma. O céu estava assim. Quase 22h e nós a olhar do alto do 11º andar. A cidade neste ciclo é uma mulher em pleno ataque de nervos, com overdose de TPM.
-Vais levá-la?
-Não, estás louca! Com este temporal. Tem de ficar na garagem. Esperamos lá em baixo que passe um táxi.
-Não, espera! Rua Monlevade, por favor. 15 minutos.
Aperta o botão. Aquele cheiro a madeira antiga andar a baixo, “click”.
-Vamos directas, melhor!
E esquecemo-nos do número. Só a Rua. Ali, na M.A. E o trânsito não tem solução. Pára-arranca na Paulista. Um verde-arranca que roça o vermelho-simbólico. Parados! E o taxista a insistir que eu era Corinthiana.
-E você, Palmeirense?
-São Paulino.
Entrou a "Portuguesa" ao barulho: o Clube. $ 13,70. 604. É este aqui!
-Viste as portas? Parece uma masmorra. Cárcere.
-É assim que vivem os paulistanos. Um dormir descansado enclausurado. É frio, sem nada. Paredes nuas.
Resgatamos o calor da casa. Na cozinha. E saltamos para o que importa: as caipirinhas, onde realmente começa a noite, e a sessão de abdominais louca-risada, remédio-malhação-perfeita-sem-grande-esforço-anfetaminas…
Ok, o sotaque estava lá. Ok, a camisinha dele até que tinha o ar da sua graça imigrante-geração-surf-eu-até-que-sou-jovem. E ok, as caipirinhas eram óptimas.
-Sabia que o morango é o fruto da paixão?
-Hum, sei! “Mas ‘passion fruit’ é a verdadeira e até que significa maracujá” – pensamento anulado segundos antes de cometer a heresia de dizer uma piada árida, quando a noite até tinha começado húmida.
-Eu conheço este senhor! (contaram a piada vezes sem conta a uns e outros que iam chegando, com sessões gratuitas de “la risada therapeuthique”, mas nunca encontramos a forma fidedigna de atingir a pureza e autenticidade da boca de onde saiu).
-Acho que já me foi apresentado! É director de uma empresa portuguesa qualquer. Espera, nem sei. Eu até achava que ele tinha sido contratado para fazer as caipirinhas.
“Laugh situation em OBS”: as piadas só têm realmente piada quando inseridas em determinado contexto… Excepção: esta terá sempre piada e quase iniciou um “sitcom-made-in-sampa”. Mas o rolê continuou. O B. está cá há dois meses. E D. resolveu dar uma lição a valer sobre como-comprar-bem-e-caro na Óscar Freire:
-“Querido, presta muita atenção na decoração das lojas. Isso é essencial aqui em São Paulo. Só assim você sabe se a loja é de qualidade, ou não. O mesmo está valendo para Restaurantes”.
Ao que F. se insurgiu em surdina, depois do relato:
-“Nisso tenho a teoria do meu pai: se o Restaurante estiver vazio, não entro. Nem que tenha de esperar na fila muito tempo, é lá que fico até encontrar um lugar à mesa”.
Já não sabemos é se essa conversa foi antes ou depois do diálogo astro-esotérico, com atendimento "Web-cam" desde o Brasil. E, depois aquela imagem: um metrossexual é sempre um ser esquisito digno das páginas da "National Geographic". Lá estava ele: Cintinho milimetricamente estudado para ser desalinhado. O mesmo para o cabelo. Um riso oco e sem vontade, mas aceite socialmente, diz a etiqueta. E tenho dúvidas se aquele discurso era real, fabricado ou improvisado-fajuto que todos fingiram acreditar.
A noite até nem ia nada mal, não fosse F. entornar vinho na cadeira alheia, M. começar com discurso pró-Serra, e G. (não o ponto, o Gajo) querer brindar aos portugueses com a namorada de L. de RG brasileiro (pior a emenda que o soneto):
-“Ah, pois não pode ser só um brinde aos portugueses, está aqui ela! Ok, brindemos, então: aos filhos dos portugueses”.
OOps!!! Fazendo com que a moça enrubescesse e L. emitisse biologicamente um engasgo controlado que passou para o olhar fulminante entre um “cala-te–lá-que-agora-é-que-me-vais-arranjar-problemas” e um "não-sei-que-te-faça-agora-se-estivéssemos-sozinhos".
De resto, não sabemos absolutamente nada do que se passou na antecâmara ao lado, as fontes não se manifestaram e não houve nada, realmente, NADA, que fosse estridente e mediático o suficiente para que tivéssemos reparado. Zoom in. Sala para onde interessa, com vista para a M.A.: M. estava a passar despercebido, como um pano molhado que suga vinho, depois da peleja pró-Serra que motivou uma conversa intelectual sobre o mercado brasileiro, até que, num surto psicótico,M., gajo, dá um beijinho na cara de L., Gajo, com a namorada ao lado - possivelmente a ponderar seriamente se valeria a pena ter filhos de portugueses.
-“Querido, faz uma vasectomia que é melhor, sempre pode sair alguém parecido com M.!”, pensaria!
Depois X. entediado, e com a lata de gelo na mão, disse que tinha de se ir embora pois no dia seguinte, intensa actividade física, seca - assegura - o esperava, na fazenda de alguém importante, que ninguém sabe que tem um caso com alguém proibido, depois de uma fotografia papparazzi ter vazado na internet. Sim, ninguém sabia até ali. O segredo está portanto muito bem guardado. Se agora me esqueço de algo é porque a minha religião não permite, não é digno de registo, ou a minha memória de mulher "pós-moderna", filtrou como deve de ser o que realmente não importa mais…
Next stop: J. Eugénio de Lima, mas antes uma incursão pedestre pela Óscar Freire – eu, herege, me confesso, porque que não prestei atenção à decoração interior das lojas, ainda que as luzes estivessem num momento “penumbra-by-light”.
Começou, depois, uma conversa escatológica sobre as razões de F. e A. quererem frequentar a JAL, antes do Charme e do glamour da Augusta. Mas a recepção da Eugénio veio a confirmar-se mais eficaz …. No canal erótico na recepção de A. e F. com cenas “Sado-maso” e "gajas boas" (acho que não eram de Ermesinde).
O Charme deu-me alucinações: parece que vi o Axel Rose, versão piorada e em plena crise adolescente; M. confessou ter o hábito de se levantar de madrugada para sugar tudo que existia de Fórmula 1 – (Convenhamos que há coisas piores, poderíamos não reparar na decoração da Óscar Freire). E mergulhei num estado de primeiro sono que quase me estragou a noite às 4h da manhã. O café intragável salvou-me a honra, para aquilo que seria, segundo F. e A., a minha real primeira vez, para roubar a virgindade de Augusta (olha que este também daria um título genial).
Foi então que nesse Vegas “huntz-tch-tch-puntz”, vimos o pai Natal sem barba "shaking-that-ass"; mexemos o corpo como quem leva pequenos choques e sai da maca para se sacudir ainda aturdido, como se o corpo regurgitasse em forma de espasmos; vimos o Pai-Natal novamente; a malta dancing queen no engate e a dançar como se os ombros se fossem desfazer percorrendo, liquidamente, as veias como ondas electromagnéticas que expelem pelos dedos; e vimos o Pai Natal a dançar de novo, desta vez num pára-arranca de quem quer andar mas não anda. Sem barba, já o disse? E nós ainda a abanar o corpo como adolescentes na sua primeira vez nas lides da noite, até ser dia. Sem o sabermos assim seria. Até que num vai escada-acima-escada-abaixo-escada-acima ficamos com a mania de dizer: o SOM-AQUI-É-SEMPRE-MUITO-BOM, mesmo que já o tenhamos dito nessa giga de cima-e-abaixo. “Click, blat”. Mais uma cerveja, o líquido âmbar que cai aveludado pela garganta depois de um primeiro teste na boca.
-Stella? Como é que pedes Stella Artois, aqui?
Ou ele estava bêbado, ou com surto de imersão antropológica a fazer trabalho de campo, e busca de respostas inusitadas, ainda às 5h da manhã, seriam? Mas o mais inusitado seria isto:
-O meu primo tem a mania de me apresentar pessoas a altas horas da matina, que não conseguem manter um diálogo e que certamente não se lembrarão de mim no dia seguinte!
Mas foi o primo, o lúcido, no passo seguinte. A. dixit:
-“Não se assustem, lá fora com o sol. Vai ser dia!”.
Dúvidas… E os óculos de sol imprescindíveis, quando ainda a música ia alta e a porta se abria assim, na escuridão do que seria ainda noite, para nos dar o dia…
-Este aqui é o D-Edge né? Vim de propósito aqui mostrar aos meus amigos este bar: o D-Edge né? Muito bom!
-Tá louco cara, aqui não é o da D-Edge não. Aqui é o Vegas. O D-Edge é lá na Barra Funda.
-A sério? Que bar horrível então. Legal é o da D-Edge.
Com este diálogo começaria portanto um novo capítulo nesta saga. Ebriedade. Ah, antes de chegarmos lá temos de passar em todos os botecos da rua.
-Ah, há um que é onde tem mais drogados. Isto é São Paulo. Perdon, una copa?
-Oi?
- Ah é muito legal aqui, com estes copos todos. Mal-educado, não tem sentido de humor. Bohemia ou Brahma?
-E tu? Não bebes nada. Ah fraquinha. Estás bem?
-Gente vamos embora. Aqui já deu o que tinha a dar. Então, bom dia, é isso! Ah, você é da Gol? Ah, TAM, muito bem. E você chora sempre que ele vai embora? E vai voar? Ah, não fala nisso não.
-Olha um pólo igual ao teu. Com crocrodilo, em preto. Boa? Na mesma loja.
-Ah, vá não me deixem para trás. Até fiquei com medo.
-Olhe, você é daqui do Savoy? Sabe quanto fica um quarto.
-Depende?
-Ah, para três? Oi? (Mãos devem ter deslizado no suado. O gole da saliva deve ter sido em seco. As pupilas dilataram e os olhos esbugaralham). Como assim? Ah é que a gente está sempre junto e só fazemos tudo os três. Não tem jeito. Mas você sabe quanto fica um quarto aqui para nós?
– Ah, para três é difícil, não dá não. É só para duas pessoas.
-E como a gente faz para três?
– Mas quanto tempo seria? Ah, até eu g...
(Glup, de novo, desta vez com um trago mal dado da saliva que saiu ácida e em velocidade azia. Ahhck).
-3 horas?
-Ih, você acha que três horas chegam?
Enquanto isso o segundo elemento contorcia-se de risos convulsivos encostado a uma parede e o terceiro elemento, que entretanto assistira a tudo em primeira fila, sem proferir uma palavra, ainda em estado de choque.
-Mas vai lá perguntar, talvez eles possam te ajudar. Vai lá, vai.
-Como você se chama? Valeu Tiago. (E o Tiago com certeza a partir de agora poderia brilhar no circuito das amizades com uma história assim transformada em piada que pareceu, afinal, ser muito séria.
Os próximos passos têm duas letras: BH… O mais famoso lugar da Seleta na Augusta. Para um prato feito às 8h da manhã e a destoar um suco de goiaba e uma salada de frutas do segundo elemento, entre o sei-lá-o-que-comerei-só-não-quero-arroz-e-batatas-logo-pela-manhã. Mas acabou por depenicar o arroz de A., que por sinal estava óptimo. A dar sinais de fraqueza o primeiro elemento, que entretanto ainda não tinha gozado, começa a baixar a cabeça, até que M. o cara do "não-não-não-não-não-tem-problema" chega com ar dúbio e desconcertado. E ainda tinha de rodar os olhos até uma qualquer cidade do interior porque era dia das mães e ele, afinal, ainda não tinha comprado a prenda que queria. Por esse andar talvez não comprasse nunca e usasse aquela resposta óbvia e obsoleta: você quer melhor prenda do que eu, seu filho? Ahhhh,pois então…
A. mostrava cada vez mais sinais de irritabilidade. Levantou-se de zás-final-é-agora e pagou. Nunca mais lhe sentimos o rasto. Restou uma mesa a dois. Uma salada de fruta inacabada, com banana. Arroz por comer. E a manhã ali tão alta… A Augusta assim é um antídoto contra a crise e onde o mundo se refugia para expiação. Céu, inferno, pecado e abolvição. Perdição engenhosa para cuidar das coisas da alma e da insónia. Anti-depressivo que se dissolve na alma, em vertigem de vícios irreparáveis, irreversíveis. A noite terminaria assim. Num começo de um dia. Com expiação.
P.S: Ah, é verdade! Escorreguei no teu vinho… A sapatilha ainda plissou no líquido frutado que se entranhou “no chão daquela varanda”… Oops! Olha, bem vistas as coisas esse poderia ser o título do livro! No chão daquele varanda… Quinky?
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