Maria entra no prédio. A porta chia. Roçam as dobradiças. Acutilantes, secas, desgarradamente estéreis. De óleo só o cabelo do solteiro do subsolo. E o rançoso dos ralos. As janelas estão remendadas: fita-cola castanha, transparente, sacos plásticos do Continente: amarelos, brancos. Miaaauu, um gato “stressado”, eriçado, empenhado em roçar-se depois. As socas tacteiam o chão lapidado de solas.
Depois “PLOCS” violentos. Parece que pisa ovos fora do prazo de validade. E aquela saia foi moda há anos. As cores estão murchas, como as mãos: gastas pela lixívia. "Domestos 3" para um-branco-mais-branco-que-quase-lava-almas. Menos as paredes daquela entrada. A sujidade entranhada é inquilina fiada, com lugar cativo do alto, amigada com aracnídeos, exímios da arte de costurar teias. Se tivessem corpo, poderiam ser executivos de sucesso. Aquelas paredes da entrada já que mereciam um produto assim. Vai continuar a merecer mais uns quantos milhares de badaladas de relógios estragados. Sem tempo. O cão ladra. Gane, agora. Latidos roucos ansiosos pelo pão. Hoje vai ter migalhas, que o pão é para o Zé.
O velho do quarto andar sai do elevador. (schiuu...é o senhorio!) Balbucia amenidades consigo, enquanto leva ainda o jornal que assina há 40 anos debaixo desse sovaco azedo Brut século passado. Coitado, e ele que até é tão limpinho! Clique! Tlac! Zum! Flit! A saia roda. As flores desbotadas bem que ganham viço no ar. Grades malandras quase se desfazem em pedacinhos metálicos. Elevador que quase encalha.
Zás! Maria vai. Maria sai. Ai, Maria: outra! O casal de namorados enrosca-se nas escadas. Ele tapa a cabeça rapada com o carapuço do casaco bordado a um “I´m the Man” (talvez o único naquele antro de almas descasadas): um Eminen de boca colada nos lábios da “mina” de mamas que começam a encher o soutien. Mais uns meses e rompem. Meias amarelas. Sapatos roxos. E amanhã há mais.
No terceiro andar moram gritos. Uns dias mais bem humorados – raramente – outros mais inflamados – quase sempre! A porta para o lado de dentro dá para uma mulher -trombeta, desajustada às necessidades dos filhos da era high tech: Boicote aos pais.
Apareçam um dia destes na nossa vida, estamos em “black out” até à idade adulta. Ardem de suor adolescente, fervidos pelo poder absoluto de eu sou um máximo-e-ai-de-quem-me-contrariar. E só para contrariar: bem vistas as coisas são vítimas, sim senhor. É um problema de mobiliário. A culpa não é da fase do armário. Já saíram dela: estão na fase da cama. Na tua ou na minha? Ele não pode fazer isso: IPOD, POD...Basta ligá-lo. Plug in...
Um TAC-TAC sai das escadas. Entra Dona Rita. O quiabo está quase grelhado. Depois o milho. E hoje vamos comer migalhas que o pão é para o Zé na prisão amanhã à tarde. Ela tirou o dia de folga para viajar quatro horas de autocarro. Abraçar durante 20 minutos. [18 dos quais com o mau humor acumulado - arrepende-se nos dois últimos - mais que as milhas aéreas para trocar. Cartão ouro mundial para o principal mentor dos dentes cerrados]. E voltar. Uma vez por mês não custa. Custa é saber quando ele sai. Se é que ele sai.
Entra a polícia. Tiros para o ar. Se tivessem luz fariam um daqueles fogos-de-artifício quase pseudo-carnaval. Olha a quica, a quiquinha... Amor, passa-me um cigarro. Conta os trocos. É dia dez e o pilim já se foi. Faltam 20 dias. Quem acha que a vida é dura não conhece o Prédio do Cais 23.
Cheira a suor. Houve ouro escondido um dia. Devoram-se corpos. Apanha-se beatas do chão: uma e duas vezes. Até juntar a terceira para fazer mais uma. Sugam-se migalhas. Vende-se sentimentos. Desfilam olhos famintos no buraco da fechadura. E Maria vai coser massa com frango para hoje, porque amanhã é dia de pão!
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