1. No primeiro Natal de Alberto, os ratos roubaram o bacalhau da pia,
onde o peixe estava de molho. Toda a família, que poupara o ano inteiro
para poder ter um pedaço de Portugal na vida emigrada no Brasil, ficou a
pão, batatas e cebola. Dias depois, como o cheiro nauseabundo
infestasse o ar com a sua pestilenta marca de podridão, foram descobrir
restos de bacalhau por baixo dos tacos.
2. Chego ao Brasil e a vida parece ser mais lírica. Senão vejamos:
durmo num quarto onde as estantes são albergue do mais excelso legado
literário do Brasil com edições lindas, antigas, ornadas de pó
implacável e as cicatrizes amareladas no papel. Mais: viajo para a Ilha
de Paquetá com as Anas e vamos a ler em voz alta “A Moreninha”, romance
do século XIX de Joaquim Manuel de Macedo que se terá passado nesse
pedaço de terra. Depois, chego a conhecer um descendente do escritor
Guerra Junqueiro; outra: consigo uma edição rara do livro “Emigrantes”
do Ferreira de Castro, com ilustrações de Júlio Pomar. Há qualquer coisa
no ar dos trópicos!
3. Alberto foi um dos que inauguraram a estrada que rasga o Brasil do
Rio de Janeiro até Brasília, em 1960, ao volante de um camião,
transportando os móveis dos políticos que estavam de mudança. Achou que
voltaria com o serviço pago, mas tudo o que lhe deram foi um tal de
cheque. Nesses 15 dias, a mulher, que lavava roupa para fora, amealhara o
suficiente para comprar o fogão que cozinharia o primeiro jantar de
Natal. Ele que fosse trocar esse tal de cheque porque era preciso ir,
finalmente, comprar o bacalhau. Alberto não poderia adivinhar que, dois
anos depois, voaria num pássaro gigante para Portugal e que traria o
bacalhau escondido numa mala.
4. É a primeira vez que Ingrid viaja de avião e que passará o Natal
sem os pais, diz-me. Testemunho o seu batismo de ar, com nove horas de
viagem, atravessando o Atlântico, aos 16 anos. Ela conheceu uma amiga
portuguesa pela internet, os pais certificaram-se que essa amiga existia
e que não era um homem mal intencionado. Lá a deixariam passar um mês
em Portugal. Aterramos, separamo-nos com a promessa que nos
encontraríamos do outro lado, cumpridas as formalidades fronteiriças;
passo com o meu passaporte eletrónico mais rápido do que ela;
perdemo-nos. E recordo a frase do livro “A menina quebrada” de Eliane
Brum: “hoje, sou povoada pelos homens e mulheres extraordinários que
escutei como repórter. E agora tudo o que vivi dará sentido ao que
virá”. Ocorre-me, talvez por isto: “Onde andará Ingrid?”