Foto de Vanessa Rodrigues |
Há os e-mails para ler, as mensagens de Facebook, os telefonemas não
atendidos, as notificações de notícias, as pendências no caderno, os
pop-ups de mensagens por responder. As imagens rápidas de uma realidade
que acontece na televisão cortam da desigualdade social para o anúncio
de automóvel sexy, do mega desconto do supermercado para o champô que
promete revolucionar o couro cabeludo dos desprovidos de fios de cabelo.
Há todo este bulício intersticial que acontece, imposto, contundente,
cortante, violento, antisséptico. Um estardalhaço que nos esfrangalha a
capacidade de pensar. Este fragor sensorial que nos higieniza. Que não
me deixa, sequer, inventar personagens para esta crónica, porque me
oferece uma miríade de vidas reais com estórias que parecem inventadas.
Por exemplo, há todo este zunzum de festa psicadélica que entorpece
quando leio sobre Alfred Postell, o sem-abrigo com diploma de Harvard,
que acabou na rua vencido pela esquizofrenia, conta o Washington Post.
Se calhar a culpa foi de todo este estrondo que nos endoidece. A
história dele recorda-me a de um outro sem-abrigo, que diziam ter sido
um diplomata francês, que vagueou, durante longo tempo, pela Praça da
República, no Porto, há um par de anos. Arrastava-se, com um barba
generosa, de esconder faces, de tornar um homem espectador da sua vida,
como se habitasse outro corpo.
Tantas são as voltas retorcidas, as vontades vencidas, o rasgo de
solidão, desespero e dimensão mental que, de repente, nos levam a
transpor a fronteira entre algo e o nada. Entre a dimensão de uma vida
que parece destinada à correnteza de um sufoco. Ténue é a fronteira da
impermanência, da vulnerabilidade, deste texto e das mãos vazias. Ténue e
enredada pode ser a invisível barreira de um surto psicótico, de um
esgotamento nervoso, de uma afamada depressão, de um esquecimento, até
de como é o barulho das coisas ao cair. Lembrem-me, por favor, de
inventar um personagem que colecione sons sem endoidecer, que tal como
japim imite os sons à sua volta, e que seja capaz de reproduzir o
silêncio. Já imaginaram todo o silêncio?
*Crónica publicada a 7 de Outubro de 2015, no Porto24