Este homem magro e de chapéu verde-musgo a condizer com a camisa,
simpatia ancestral, viu-nos passar e chamou como quem ordena lei: – “Oh,
não querem tomar um vinho?”.
*Crónica publicada originalmente a 11 de Março de 2015, no Porto24, com a chancela Bairro dos Livros.
ilha de Santa Maria, Açores, Março 2015|@Vanessa Rodrigues |
Conheci o Trovão, logo ao descer a reta do Desterro, depois de ter
passado Brasil, pela manhã, Almagreira e Santa Bárbara, embora ele more
na Graça. É a sua adega com vinho de cheiro e jaquês que o prende à baía
de São Lourenço, nestes dias com mar calmo e vigília de lua cheia.
Dizem que sustenta Impérios, todos os anos, esse pagamento de promessas
religiosas à conta do Espírito Santo, alimentando as bocas da ilha de
Santa Maria, nos Açores, que se reveza nas copas comunitárias. Há de
ler-se n’”O Baluarte”, logo em janeiro, para ver se o nome dele não
consta na lista anual de homens de sopas do Espírito Santo. Sopas com
cozedura especial, pão e muita carne de vaca e uns segredos que apenas
três a quatro famílias conhecem em toda esta ilha, espraiada nos seus 98
quilómetros quadrados.
Este homem magro e de chapéu verde-musgo a condizer com a camisa,
simpatia ancestral, viu-nos passar e chamou como quem ordena lei: – “Oh, não querem tomar um vinho?“.
Mal percebemos e já estamos na loja com olor a bagaço e mosto, entre
barricas envelhecidas e conversas de água salgada, usada para preservar
este vinho de cor cobre-salmão. Mal nos tenta sair resposta pensada na
ousadia do não e já estamos encafuados, sabe-se lá como e por que
magnetismo insular, na toca deste pai de duas filhas que são a fotocópia
da mãe. E, afinal, como se chama este homem que não tem um pulmão, nem
um rim, e que esteve de junho a outubro, para morrer, no ano em que fez
meio século, naquela que foi a sua primeira viagem ao continente? Já lá
vamos que ele mantém suspense no parlatório. – ”A receita que os
médicos lá no continente [Lisboa] me passaram é que não tinha solução.
Era para ter ido embora. Estive meses sem comer e agora é isto.”
Este agora são nove anos depois e isto duas horas diárias de caminhadas a
pé, desde então, na companhia da pequena égua, que isto de não ter
alguns órgãos é uma revolução na anatomia. Talvez tenha sido a condição
insular, para o homem que vive duas vezes: uma hora a menos nos Açores é
a Portugalidade a viver em mundos paralelos, um hiato de uma hora que
fica suspensa. Uma vida extra, como nos jogos. E lá se lembra, enfim, da
pergunta anterior, lá em cima: – “Eu não me chamo, os outros é que me chamam a mim.” Diga: como é que os outros lhe chamam? – ”Isso
varia. Se mandar uma carta para António Moura Moreira, ela é bem capaz
de não chegar até mim. Agora, se puser António da Margarida, que era
minha mãe, há-de chegar-me às mãos.“ E são estas mãos calejadas, de mar, de terra, de vinho, de vento, de esperança. ”Há também quem me chame cachaneta, ou então António Trovão. O Trovão.” Um homem que é uma tempestade? – ”É
coisa muito antiga. Andei um dia na pancadaria, com o Malaquias, que
tem casa lá no continente, e levei uma pancada que parecia um trovão. E
como não há Trovão sem Faísca, dei -lhe o troco. E, pronto, lá ficou ele
conhecido como Faísca.”
*Crónica publicada originalmente a 11 de Março de 2015, no Porto24, com a chancela Bairro dos Livros.