Vanessa Rodrigues
1.
Diz a lenda, propalada em várias metáforas civilizacionais, que há
milhares de anos, os homens quiseram escalar até ao céu, numa torre
de babel, para chegar à divindade. Enfurecido, deus, o homem que se
diz tecer literatura invisível, trocou a língua dos homens e
obnubilou-os com
linguajares disformes. Foi preciso Lis viajar para o Médio Oriente
para que isto fizesse sentido. O que será que diz naquele graffiti
no muro ao lado daquela Mesquita?
2.
No Capão Redondo, periferia de São Paulo, Brasil, com uma taxa de
criminalidade que faz inveja aos filmes do Tarantino, há sarau
cultural às quartas-feira. Há uma lista de candidatos
para dizer
poesia. O homem de óculos de fundo de garrafa recita Pablo Neruda
entre poemas seus. A plateia, lotada, come farofa, feijão preto e
bebe cerveja. Cá fora, a polícia revista carros e homens armados.
Depois entra, mistura-se, bebe a mesma literatura no ar. Babélica
conciliação.
3.
Iveta
e os amigos começam a cantar em checo. Rostos iluminados; chama da
fogueira. Lis trauteia com eles; tenta. Sorri com os olhos. Não faz
a mínima do que cantam. Sob a luz da lua, vê
um bunker enterrado no quintal de casa da amiga checa, vizinha com a
fronteira alemã. Pensa que os homens enregelados que ali um dia se
esconderam, a mando bélico, tinham era medo que o silêncio
quebrasse.
4.
Língua Árabe; desenhada. Lis não entende uma palavra, entrega-se,
por vezes, à poesia da linguagem não verbal; onomatopeias.
Comunicação em estado puro. É quando a Torre de Babel se ergue, ao
mesmo tempo que se desmorona: não há raça, religião, cultura, ou
aberração linguística que separe os homens, se não quiserem. Lis
quebra o silêncio, aponta para o mural. Alguém traduz o graffiti:
“é preciso escalar-se as montanhas que o homem carrega para
entender melhor”. E isso, sabemos, não há tradutor Google que
esclareça.
*Crónica publicada a 07 de Junho de 2013, no semanário Grande Porto, na página Bairro dos Livros, iniciativa Culture Print. Coluna partilhada, semanalmente, com Jorge Palinhos, Rui Lage e Rui Manuel Amaral.