sexta-feira, março 30, 2012

Em busca do tempo perdido...

...com Proust, naturalmente, a folhear o primeiro volume numa bela e inteligente tradução de Pedro Tamen; há-de depois ser com Becket à espera de Godot e, dizem os entendidos, devo ainda obstinar-me na leitura de "As Confissões" de Santo Agostinho, tratando-se, pois, de um genial tratado sobre o tempo e a relação com a memória, impermanência, e o tecido invisível que nos tolda àquilo que não existe. 
Há, sabemos, esta inquietação pessoal em contar os grãos da areia da ampulheta para, com certeza, percepcionar que essas mesmas partículas, afinal, são a réstia de um futuro que antecipa o presente. Eu explico: certa vez, a minha avó acordou abruptamente de uma das grandes crises que  teve, dois anos antes de ela morrer, e que a sujeitou à inércia vegetativa dos cuidados intensivos, durante um mês e meio. Como estava com uma crónica crise bronco-pulmonar teve de se ser sedada e o cérebro alimentou-se de calmantes, enquanto a fisiologia tratava de funcionar e sanar, dentro das possibilidades, o que ainda lhe restava de vida. Lembro-me do primeiro dia em que a vi naquela lúgubre cama de hospital e ela me perguntou se eu tinha apanhado o relógio do chão. Eu não entendi. Ela repetiu e disse que o relógio estava ao lado da cómoda, mas que ela não conseguira apanhá-lo. Mais tarde, quando cheguei a casa vi que o relógio estava exactamente onde ela dissera e, dessa forma, apercebi-me de que a sua última memória fora essa, e que durante um mês e meio não houve tempo para ela. E como tempo é memória - ou melhor o passado é o tempo que reside na memória, o presente não existe e o futuro tão pouco - só posso inferir que o tempo, claro está, é o truque mais genial que o pensamento nos impõe contra nós próprios numa luta ilusória e que é, paradoxalmente, a nossa realidade viva, que entendemos como verdade e que, assim sendo, o nosso maior desafio do que nos resta de vida é entender a natureza da mente, percebendo que o tempo não existe e que o que realmente há é o mundo que temos dentro. Às vezes calha de alguém se cruzar com o mundo endógeno que habitamos. Ao menos, nesse dia, essa será a verdade. 

quinta-feira, março 22, 2012

(Amazónia) Labirinto Infinito, Grande Reportagem TSF

Pusemos a mochila às costas e, durante 4 meses, perdemo-nos na selva , nos rios e igarapés da AMAZÓNIA brasileira. Hoje, depois do noticiário das 19h, na TSF, vamos sobrevoar a selva, dormir com tarântulas, subir o Rio Amazonas e conhecer o Povo Indígena MURA, num linguajar exótico. "Labirinto Infinito" é uma Grande Reportagem desta vossa escrava, com sonoplastia de Joaquim Dias.



quarta-feira, março 07, 2012

Ladrão de Vidas

Não tem hora, nem estação do ano ideal, e muito menos o propício momento se dá à noite ou durante o dia. Acontece. E só há uma forma de o evitar: não olhar nos olhos. É a porta. Se querem poupar-se não deixem que ele se cruze com o vosso campo de visão. Ele rouba vidas, porque não suporta a dele; já dessa não se salva, por isso usurpa. Não há lei, nem tribunal que preveja ou julgue tal crime. Submundo que é desconhecido. E, uma vez na nossa, não há forma de o expulsarmos até que saia e nos tenha tornado os dias num inferno. A mente vazia é recreio do diabo. E este recreio é a luta pela própria vida. E não haverá sangue, nem dor, ou gritos aflitos que os outros ouçam para socorrer. É um jogo de dentro, onde mais ninguém entra para poder saber do berro que a alma dá.

Hoje vi-o, reconheci-o. Olhava-me pelo reflexo do vidro, vigiando, como se anunciasse que era a dileta para a noite. Mas isso foi depois. Antes esperava como eu o último autocarro, no frio de um Porto de invernia atípica, de gelada brisa que penetra na derme, trespassa a camada óssea e nos arrepia. Lançou-me o olhar cirúrgico de quem faz um primeiro diagnóstico. O ardor de incómodo desconforto acometeu-me. Percebi. Entrei e, lá ao fundo, no rasto do autocarro, sentei-me de costas para a marcha. Ele acomodou-se no último lugar, de frente para mim, para poder mirar-me. Virei o rosto para o telefone, fingindo concentração. Ignorei o atento olhar, penetrante e incómodo de sabermos que estamos a ser observados no detalhe médico, como microscópio de última ponta em busca do comportamento das células. 

Ocorreu-me nesse instante que, na semana anterior, uma mulher me tinha lançado mesmo olhar, guloso e dessa lânguida sensaboria ansiosa de degustar a vida dos outros para a roubar. Queria, atesto, surripiar a minha, porque, num primeiro instante, poderia parecer-lhe melhor do que o cabelo oleoso que deixava escorrer pela cabeça, uma réstia de cor loira, que entretanto se tranformara num cobre azedo, como as putas em fim de carreira quando deixam o verniz estalar, aos bocados.

O meu ladrão de hoje é ruivo e pude ver-lhe um sorriso de triunfo como quem dá como certa a vitória sobre a presa na peleja predadora. Não cedi. Pude ver pelo reflexo do vidro do autocarro que magnetizara os olhos em mim. Uma obsessão doentia. Aquele sorriso maligno. A marcha. O reflexo. Fingi nova atenção sobre o telemóvel, enquanto a cabeça processava dezenas de planos para escapar ao roubo de vida. Houve silêncio. Ele mudou de lugar. Como fingisse não perceber, mas abonada de periférica visão, controlei o meu predador, nos limites ópticos. 

O som de motor de autocarro. Pára- arranca. Portas abrem, fecham. Sinal de paragem. Sonora voz feminina indicando as estações. O vidro, o reflexo, as estratégias da minha cabeça para a evasão. Raciocínio militar: e se simulasse sair agora, seguir-me-ia? Se fingisse sair, talvez ele saísse antes e livrar-me-ia de um roubo anunciado, de vida.

“Próxima paragem, Recarei”

Apercebi-me de que era agora. Iria roubar-me a vida. Entrar nela e seguir comigo para casa, fingindo ser eu, mas sendo ele. Não olhei. O reflexo de novo como salvaguarda. Deteve-se do meu lado. Achei que iria obrigar-me a olhá-lo. Um toque espontâneo bastaria para que me distraísse e em reação olhasse o dono da mão que me tocaria. Segundos que pareciam eternidade. Paragem. Ele sai antes de mim. 
Posso jurar que vi o reluzente vermelho de dois olhos pequenos a brilhar no reflexo do vidro. Parece que hoje o diabo não teve recreio.